O impacto de “Ainda Estou Aqui” destaca a necessidade de preservar a memória e buscar justiça em meio às tentativas de reescrever a história. Hannah Queiroz O sucesso do filme “Ainda estou aqui” transcende o cinema. É um reflexo de algo muito maior: a busca por reconhecimento, por identidade e por justiça histórica. Mesmo após quatro meses de seu lançamento, o impacto desse filme ainda está presente e marcante na memória dos brasileiros. No Brasil, o longa já arrecadou mais de R$ 25 milhões, e no exterior, atingiu US$ 8 milhões, o que demonstra a ressonância que sua mensagem teve em diferentes públicos. Não há indicação a Oscar que tenha mais valor do que o sentimento despertado ao assistir essa obra. Ela é sobre memória, cidadania e o dever de lembrar. E, mais do que isso, é sobre o direito de contar a nossa própria história, do nosso jeito. Nos últimos anos, o revisionismo histórico — processo em que eventos do passado são reinterpretados, muitas vezes com o objetivo de modificar a percepção coletiva sobre eles — tem ganhado força no país. Algumas lideranças políticas, por exemplo, passaram a defender a ditadura militar como um período de ordem e progresso, ignorando ou relativizando casos documentados de censura, tortura e perseguição a opositores. Discursos que exaltam o regime como uma “revolução” necessária ou que negam a existência de crimes cometidos pelo Estado ilustram essa tentativa de ressignificação da história. Assim que a obra estreou, redes sociais foram tomadas por reflexões, relatos e memórias da época. No TikTok, uma trend viralizou: filhos e netos de vítimas da ditadura compartilharam fotos, cartas e histórias de seus familiares que foram torturados e perseguidos. É como se o filme tivesse reacendido o debate sobre um passado que, apesar de não totalmente esquecido, vinha sendo pouco discutido. Outro reflexo inesperado foi a presença massiva de pessoas mais velhas nas salas de cinema. Com o crescimento das plataformas de streaming, muitos filmes nacionais enfrentam dificuldades para atrair o público às telonas, o que torna essa mobilização ainda mais significativa. Mas faz sentido. Para essa geração, a ditadura não é apenas um capítulo nos livros de história — é uma memória vivida. O filme se tornou um espaço de reencontro com o passado, uma forma de ressignificar experiências e reafirmar que aquilo que viveram, de fato, aconteceu. No fundo, Ainda Estou Aqui é um grito coletivo de um Brasil que se recusa a ser esquecido. Mais do que um evento isolado, essa movimentação sugere que há uma sede por histórias reais, por narrativas que não apenas entretenham, mas provoquem reflexões. A forma do cinema brasileiro, muitas vezes subestimado dentro do próprio país, se manifesta com potência quando histórias como essa encontram um público disposto a ouvir. O sucesso da obra nos lembra que o cinema nacional tem uma função que vai além do entretenimento: ele documenta, questiona e, acima de tudo, resiste. A comoção causada por Ainda Estou Aqui lembra o que aconteceu com Marighella, de Wagner Moura. Assim como o filme sobre o guerrilheiro sofreu boicotes e ataques antes mesmo de sua estreia, Ainda Estou Aqui também enfrentou críticas de figuras políticas que tentam reescrever a história. Assim como no passado houve tentativas de distorcer ou justificar os crimes cometidos durante a Ditadura, hoje esse revisionismo histórico se repete, mas, como no caso de Marighella, a reação do público tem sido uma poderosa forma de resistência. O que essas obras têm em comum, além do tema histórico, é a capacidade de transformar a experiência cinematográfica em um ato político. Não no sentido partidário, mas no sentido mais essencial da política: o direito à memória, à justiça e à verdade. O apagamento da história Se há algo que o sucesso desse filme escancara, é a dificuldade da sociedade brasileira de confrontar seu próprio passado. Quando uma nação não se esforça para compreender sua história, ela se torna mais suscetível a distorções, manipulações e até retrocessos. Mesmo após iniciativas como a Comissão da Verdade, sancionada pela ex-presidente Dilma Rousseff em 2011, o debate sobre a Ditadura Militar segue fragmentado, e, nas redes sociais, é possível ver que muitos ainda preferem ignorar as marcas que esse período deixou. Essa falta de reconhecimento do passado se reflete não apenas na educação, mas também no cotidiano da sociedade brasileira, onde muitas vezes a memória da Ditadura Militar é apagada ou distorcida. Quando figuras públicas minimizam ou rejeitam filmes e produções que abordam esse período, como foi o caso do ex-presidente Jair Bolsonaro, (que disse: “Nem vou perder meu tempo, tenho o que fazer. Conheço a história melhor do que eles”, elas) contribuem para manter essa negação. Além disso, o ex-ministro da Cultura do governo Bolsonaro, Mario Frias , também seguiu a mesma linha, classificando a obra como “manipulação comunista”. Esse tipo de discurso não é novo. Durante anos, figuras políticas alinhadas à extrema direita tentam transformar a Ditadura em um período “ordeiro”, em que “não houve corrupção” e “não se matou ninguém”. Mas “Ainda estou aqui” não precisa de ideologias para ter impacto. A vwwerdade, por si só, já é forte o suficiente. O revisionismo histórico, além de ofensivo às vítimas e seus familiares, tem um impacto real na sociedade. Quando um governo relativiza crimes do passado, ele abre caminho para que novas violações aconteçam no presente. Se o Estado não reconhece os erros cometidos contra seu próprio povo, como garantir que eles não se repitam? O caso de Rubens Paiva, embora sem esclarecimentos completos, tem mostrado avanços. A abertura de arquivos secretos e o reconhecimento de torturas e mortes são passos importantes, embora ainda insuficientes. Esses avanços, embora lentos, são essenciais para confrontar o passado e garantir que a justiça seja feita. A memória histórica não pode ser apagada por decreto, por discurso ou por revisionismo. Se há algo que esse filme prova, é que a história do Brasil não pode ser ignorada. E se ainda há quem tente fazer isso, o cinema, a arte e a cultura continuarão
Movimento antivacina: ameaça à saúde coletiva
Com 21% dos brasileiros temendo reações adversas, especialistas apontam a influência da pandemia de covid-19 no movimento antivacina A vacinação é reconhecida pela Organização Mundial de Saúde (OMS) como uma das ferramentas mais eficazes para a proteção da saúde pública, capaz de prevenir doenças, reduzir a mortalidade e erradicar enfermidades endêmicas. No Brasil, o Programa Nacional de Imunizações (PNI), criado em 1973, consolidou o país como referência em campanhas de vacinação, alcançando altas taxas de cobertura vacinal e contribuindo para o controle de doenças como o sarampo, rubéola e a coqueluche. No entanto, nos últimos anos, discursos que expressam a desconfiança e insegurança em relação às vacinas têm ganhado força. Em nível nacional, segundo uma pesquisa do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), divulgada em junho de 2024, 27% dos entrevistados afirmam já ter sentido medo de se vacinar ou de levar uma criança ou adolescente para se vacinar, enquanto 21% avaliam como alto o risco de reações adversas às vacinas. Esse fenômeno tem acompanhado uma queda significativa na cobertura vacinal no Brasil, que, após atingir 97% em 2015, caiu para 75% em 2020, segundo dados do Instituto Butantan. A queda na cobertura vacinal ocorre por diversos fatores, desde a dificuldade de usar os serviços de saúde, até o escasso acesso à informação. Contudo, especialmente após a pandemia de covid-19, cresce a tendência de descredibilização das vacinas e das autoridades sanitárias, antes tidas como essenciais. O anúncio da saída dos Estados Unidos e da Argentina da OMS é um exemplo disso. Constituída em 1948, a Organização Mundial de Saúde é reconhecida como um importante agente que atua na coordenação de ações de saúde em escala global. Contudo, sua gestão tem sido questionada, essencialmente por grupos antivacina que desaprovaram suas orientações durante a pandemia de covid-19. No período pandêmico, o governo de Donald Trump se opôs a algumas decisões tomadas pela organização, o que motivou, em parte, o afastamento dos EUA da organização. “A decisão de retirada responde à pressão de grupos internos americanos que acreditam que as ações da OMS foram negativas”, apontou a especialista em relações internacionais Denilde Holzhacker em uma entrevista à CNN. Tendo em vista a posição do país como um dos principais investidores na OMS, a saída reforça a narrativa que descredibiliza a organização e impacta diretamente sua capacidade de atuação. Segundo a Agência Brasil, Tedros Adhanom, diretor-geral da OMS, destacou que a decisão torna o cenário sanitário ainda mais crítico e já anunciou redução de gastos para preservar programas da entidade. Estudos como o relatório Pandemic Profiteers, do Center of Countering Digital Hate (CCDH), revelam uma tendência de descredibilização das autoridades sanitárias, bem como da politização do debate sobre saúde. O relatório de 2021 investigou o mercado por trás do movimento antivacina nos Estados Unidos e em países europeus. Com destaque para a articulação entre a indústria farmacêutica e médicos negacionistas que atacam as vacinas para, em seguida, oferecer tratamentos alternativos, como medicamentos ou vitaminas. O relatório estima que esses grupos movimentam cerca de 36 milhões de dólares ao ano com a prescrição de produtos, venda de palestras, livros e associação com grupos políticos. Motivos que influenciam a desconfiança e a hesitação vacinal Para além de questões culturais e políticas, a falta de percepção de risco é um dos principais motivos para a desconfiança nas vacinas. Com o sucesso do Plano Nacional de Imunizações, doenças como o sarampo, a coqueluche e a rubéola foram praticamente erradicadas no Brasil, fazendo com que as novas gerações subestimassem o risco que elas representam. O professor e pesquisador de comunicação em saúde do Programa de Pós Graduação em Comunicação e Territorialidades, Fábio Goveia, explica: “A eficiência do plano fez com que as gerações mais novas nem conhecessem essas doenças, o que leva a uma queda na crença de que elas são realmente perigosas”. Outro ponto que corrobora a hesitação vacinal é a preocupação com possíveis efeitos colaterais das vacinas. Para pesquisadora e diretora da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm), Isabella Ballalai, o medo associado ao não entendimento do risco de certas doenças, contribui para uma percepção de que as vacinas são dispensáveis. Esses dois fatores estão diretamente ligados ao conhecimento da população sobre a eficácia da vacinação e sua importância para a saúde coletiva. Ela destaca o desafio de estimular a vacinação entre crianças e adolescentes que não vêem motivos suficientes para se vacinar. De acordo com Ballalai, as vacinas contra o HPV (papilomavírus humano) e a covid-19 direcionada a crianças e adolescentes são as principais impactadas pela hesitação vacinal hoje, por serem focos do movimento antivacina. Dados apontam a queda na cobertura vacinal do HPV no Brasil e a desconfiança dos jovens em relação à vacinação (veja o gráfico). Panorama do HPV no Brasil de 2014 a 2025. Fontes: Ministério da Saúde; Organização Pan-Americana da Saúde; Universidade Federal de Minas Gerais, UFMG; Painel do Ministério da Saúde – Coortes Vacinais – Papilomavírus Humano (HPV) Criação: Isadora Eleutério Charge inglesa antivacina do século 19 mostra pessoas desenvolvendo características de bovinos após a vacinação contra a varíola. Fonte: James Gillray/Anti-Vaccine Society Print (Agência Senado) A história da resistência às vacinas A desconfiança em relação às vacinas não é um fenômeno novo. Desde a invenção do primeiro imunizante, criado por Edward Jenner, na Inglaterra do século XVIII, houve resistência por parte da população à aplicação das vacinas. Na época, ainda sem diretrizes de ética médica, Jenner descobriu um método de imunizar pessoas contra a varíola a partir do pus de indivíduos que tiveram contato com vacas contaminadas pela doença. A prática foi considerada repulsiva por muitos. Alguns grupos acreditavam que a doença era uma punição divina e não deveria ser tratada ou prevenida, outros, sugeriam que a vacina poderia causar características de bovinos nos seres humanos. Para a pesquisadora Isabella Ballalai, o principal motivo de desconfiança em relação às vacinas, desde aquela época, é o fato de ser um produto preventivo. “A vacina é um produto que aplico em você sem que você esteja doente, isso já assusta”, explica. Apesar
Música, Livro, Filme
Praia do futuro ⭐⭐⭐⭐⭐ O novo álbum do Baianasystem vem carregado de ritmo, com uma pegada de Olodum, e conta com participações incríveis, como Anitta e Seu Jorge. Mas a música que se destaca, para mim, é “Praia do Futuro”, uma homenagem à famosa praia de Fortaleza. Envolvente, ela convida o ouvinte a cantar junto, e é difícil resistir a esse convite. Em alguns momentos, parece que a canção vai chegar ao fim, mas é aí que ela explode, trazendo ainda mais alegria. Sorte de quem tiver a chance de dançar e cantar ao som dessa música no Navio Pirata, em Salvador. Isadora Lima A jornada – águas mais profundas Gênero: romance ⭐⭐⭐⭐⭐ É difícil imaginar que um padre ousaria escrever um livro de romance. A obra retrata histórias plurais e pensamentos diversos que conduzem humanidade ao longo da vida. O enredo apresenta um grupo formado por diferentes jovens que, por algum motivo, acabam aceitando participar da Jornada Mundial da Juventude que ocorre em um lugar sensível do mundo. Os dilemas que surgem ao longo da viagem intimam o leitor a refletir sobre suas próprias escolhas em uma sociedade que oferta tantos caminhos: crer ou não crer? Ler ou não ler? A escolha é sua! O autor do livro, Padre Anderson Gomes, que atua na Arquidiocese de Vitória, propõe uma jornada diferente aos que se arriscam a trilhar os caminhos da fé. História sensacional! Ghenis Carlos Conclave (2024) Gênero: Thriller/Mistério⭐⭐⭐⭐⭐ A indicação de “Melhor Filme” ao Oscar não foi à toa. Conclave é aquele tipo de filme que te prende, com uma trama cheia de surpresas. A fotografia de Edward Berger é impecável, com enquadramentos que fazem a gente se sentir dentro da história. Mas o grande destaque é, sem dúvidas, os discursos feitos pelo cardeal Lawrence, interpretado por Ralph Fiennes. São os momentos mais intensos e impactantes do filme, trazendo uma carga emocional incrível. Sem dúvida, uma das melhores obras do ano. Hannah Queiroz
Dengue avança apesar da distribuição de vacinas
Com mais de 281 mil casos em menos de dois meses e R$ 1,5 bi investidos em medidas de controle, a arbovirose mais temida do país não parece ceder Alice Raimondi Em 2024, o Brasil registrou um aumento de 400% nos casos de dengue em comparação ao ano anterior, totalizando 6,6 milhões de casos prováveis e mais de 6 mil mortes. Apesar da gravidade, 2025 não trouxe campanhas de vacinação em massa, deixando o país vulnerável a novas crises. A vacina do Instituto Butantan, prometida para ampla distribuição, só chega em 2026. Enquanto isso, os primeiros meses de 2025 já somam 281 mil casos e 98 mortes, segundo dados do Ministério da Saúde. O custo econômico também é preocupante. O estudo conduzido pela pesquisadora Josely Marchi Chiarella do Instituto Butantan estimou que a dengue custe ao país mais de US$ 1,2 bilhão anualmente, considerando gastos médicos e despesas indiretas relacionadas ao tratamento de complicações graves. Para o ciclo de 2024 e 2025, o Governo Federal destinou R$ 1,5 bi para ações de controle da dengue e outras arboviroses. Além disso, foram distribuídos 6,5 milhões de testes rápidos inéditos para o diagnóstico em todos os estados do país. Embora essencial para o monitoramento da disseminação da doença, os testes não são amplamente solicitados nos serviços públicos de saúde. A professora Isabela Piva, que contraiu a doença em abril de 2023, testemunha que os testes rápidos são pouco usados nos postos de saúde: “Não sei exatamente qual tipo de dengue eu peguei […], não me foi pedido o exame”. Atualmente, apenas o imunizante Qdenga, do laboratório Takeda, está disponível no Sistema Único de Saúde (SUS), restrito a adolescentes entre 10 e 14 anos. Mesmo assim, a Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm) anunciou que somente metade das doses distribuídas pelo Ministério da Saúde para estados e municípios foi aplicada. O retorno para a tomada da segunda dose também é baixo, prejudicando o desempenho da vacina. Segundo levantamento feito pelo Correio Braziliense, o Espírito Santo ficou no terceiro lugar das unidades federativas com maior número de faltantes da segunda dose. Das 174 mil pessoas da faixa etária de 10 a 14 anos, apenas 72 mil tomaram a primeira dose e pouco mais de 20% desses jovens completaram o esquema vacinal. Para a bióloga do Centro de Vigilância em Saúde Ambiental de Vitória (CVSA), Lívia Marini, o baixo interesse pela vacinação é uma das sequelas deixadas pela pandemia de Covid-19. “O movimento antivacina, que se fortaleceu nos últimos anos, colaborou negativamente para a baixa adesão das vacinas contra a dengue […] Por conta disso, algumas pessoas acreditam que as vacinas não funcionam ou que causam efeitos adversos”, aponta Marini. A desinformação é a maior culpada pela hesitação vacinal. Segundo o Massachusetts Institute of Technology, o potencial de viralização de fake news é 70% maior do que o de notícias verdadeiras. Enquanto uma postagem verdadeira alcança em média 1 mil pessoas, uma falsa pode atingir entre 1 mil a 100 mil usuários. Atrelada ao movimento antivacina, as fake news sobre os imunizantes intensificam a queda na cobertura vacinal do país. A dificuldade nacional de realizar campanhas de vacinação bem-sucedidas reflete desafios estruturais. Entretanto, a hesitação vacinal não é uma realidade só do Brasil. De acordo com dados publicados pela Organização Mundial da Saúde (OMS), a cobertura mundial de imunização infantil estagnou em 2023, causando surtos de sarampo e de outras doenças de fácil combate a partir das vacinas. Mais de 2,7 milhões de crianças foram deixadas sem vacinação ou com vacinação insuficiente em comparação com os níveis pré-pandêmicos em 2019. Na ausência de vacinas para toda a população, o governo prioriza campanhas educativas e o combate ao mosquito causador da dengue. Ações como o “Dia D” de eliminação de focos e parcerias com escolas para conscientização infantil são as estratégias favoritas para engajar a população. Embora válidas, essas medidas são paliativas e estão cada vez mais insuficientes: “As pessoas acreditam que os criadouros estão na casa do vizinho, e deixam de fazer a vistoria em suas casas […] As campanhas de conscientização precisam se reinventar: precisamos de uma comunicação que envolva as comunidades”, argumenta a bióloga do CVSA. Países como Uruguai e Singapura trouxeram soluções inovadoras como a criação de um aplicativo de monitoramento de criadouros de mosquito e multas rigorosas aos cidadãos que tiverem em suas casas água parada com ovos do mosquito. Em contrapartida, o Brasil repete as mesmas táticas das décadas de 1960 e 1970. A dengue se torna, assim, um teste de resiliência para o país. Seu combate eficaz demanda não apenas ciência, mas também cooperação social e reinvenção política — elementos que, hoje, parecem tão escassos quanto as doses de vacina. O que são arboviroses? As arboviroses são doenças causadas por vírus transmitidos por artrópodes como mosquitos e carrapatos. Estas patologias incluem a febre-amarela, zika, chikungunya, dengue e oropouche, todas com potencial para causar surtos epidêmicos. A oropouche, por sua vez, está avançando no Espírito Santo, que concentra 99% dos casos no país. As arboviroses e as mudanças climáticas: O aquecimento global e fenômenos climáticos como o El Niño são catalisadores dos surtos de arboviroses. Temperaturas elevadas e chuvas irregulares criam ambientes ideais para a reprodução de vetores como o Aedes aegypti. Entre 2022 e 2024, o Brasil enfrentou três epidemias consecutivas, correlacionadas a padrões climáticos extremos. A urbanização desordenada também contribui. O acúmulo de lixo nas cidades e a falta de saneamento básico multiplicam os criadouros. Dengue chegou até o Japão: Mesmo sendo doenças de países tropicais e subtropicais, as arboviroses estão expandindo seu alcance geográfico. Com o aumento global das temperaturas, mosquitos como o Aedes aegypti podem se estabelecer em regiões que antes eram consideradas seguras por serem mais frias e, assim, menos favoráveis à reprodução do vetor da dengue. Em 2014, o Japão sofreu um surto de dengue, com mais de 150 casos suspeitos de serem infecções domésticas em Tóquio e em outras áreas, segundo a prefeitura de Sendai. A propagação da doença foi feita pelo Aedes
Editorial
Lara Santoro, editora geral No jornalismo, dar uma informação em “primeira mão” significa sair na frente, noticiar o acontecimento primeiro. É o novo, aquele fato que pega o público de surpresa e que gera mais interesse. Mas aqui, caro leitor, você não vai encontrar temas inéditos, nem furos de reportagem. Aqui, o que é “em primeira mão” são as diferentes angulações de assuntos que já foram tratados pela mídia alguma vez. É a preocupação de trazer um tema de relevância social, mas com outras perspectivas. Essa é a intenção da 160ª edição da revista “Primeira Mão”. O processo de produção foi intenso e desafiador. Mas, no jornalismo, o que não é assim? A elaboração da revista começou com as pautas, que foram pensadas e desenvolvidas pelos estudantes. Depois, elas foram apresentadas para toda a turma e avaliadas coletivamente. O objetivo foi levantar questões que atravessassem o cotidiano da população, e mais especificamente, do estudante universitário, nosso público preferencial. Após a aprovação das pautas, iniciou-se a etapa de apuração, em que as informações foram coletadas e as entrevistas com as fontes marcadas. Foram três semanas de imersão nas reportagens, crônicas e artigos propostos. Um período de dificuldades, mas de muito aprendizado. Fontes que não respondiam, dados difíceis de encontrar, entender a melhor maneira de traduzir o que se deseja… Esses são somente alguns dos obstáculos que a equipe enfrentou. Porém, é um enfrentamento que, para quem ama o jornalismo e tem sede de noticiar a realidade, acaba sendo extremamente satisfatório. E foi com essa satisfação que a turma da disciplina “Gêneros, estilos e discursos em Jornalismo” produziu a 160ª edição da revista Primeira Mão. Durante o segundo semestre acadêmico de 2024, estão previstas mais duas edições da revista. É interesse da equipe, caro leitor, que você aproveite ao máximo. Não somente esta, mas todas as edições que estão por vir. Que você perceba, por meio de nossos textos, que existe muita coisa para além da notícia factual e do furo de reportagem. Os fatos não falam por si só, é preciso entendê-los, contextualizá-los e vislumbrar as perspectivas que existem. Contar as histórias a partir da realidade de quem, muitas vezes, é invisibilizado. Escutar quem, muitas vezes, é silenciado. Entrever aquilo que, muitas vezes, pode estar escondido. Esse é o nosso desejo. Boa leitura!
Reflexo nas telas
Como as redes sociais afetam a autoestima de mulheres negras Ao rolar o feed de uma rede social, mulheres negras se deparam diariamente com imagens que perpetuam um padrão de beleza eurocêntrico. Cabelos lisos e peles claras continuam dominando as telas, enquanto traços afrodescendentes são apagados ou marginalizados. Apesar de avanços na representatividade, a sensação de não pertencimento ainda persiste. “Ver que as maiores influenciadoras raramente são negras faz com que eu me pergunte se existe espaço para nós”, reflete Ana Beatriz Nascimento, uma mulher negra. A falta de diversidade nas redes reflete estruturas históricas de exclusão, nas quais o padrão eurocêntrico continua a dominar não apenas os ideais estéticos, mas também a distribuição de voz e destaque, silenciando populações marginalizadas nesses espaços. Segundo um estudo da agência de influência digital BRUNCH, influenciadores brancos fecham 30% mais projetos do que influenciadores não brancos. Sendo assim, como as mulheres negras irão se sentir representadas na internet se as figuras públicas às quais elas deveriam se identificar não estão sendo postas em evidência? Para a psiquiatra e especialista em neurociência e relações étnico-raciais, Indira Pinto, a falta de representatividade faz com que mulheres tentem mudar características próprias para se aproximarem do padrão estético popular. “É muito comum a queixa de que ‘ainda não foi suficiente’ e ‘não tenho ainda o cabelo com a textura que eu imaginei que fosse ficar’, pontua. A estudante Vitória dos Reis, que também é uma mulher negra, teve a mesma experiência. Quando era criança, alisou o cabelo pela primeira vez para ir a um evento e percebeu uma mudança no comportamento das pessoas à sua volta. “Notei como as pessoas me achavam mais bonita”, lembra. Essa experiência, comum a muitas mulheres negras, demonstra como a busca por aceitação social pode levar à rejeição de traços naturais. Antigamente a falta de representatividade na relação das mulheres com a internet ocorria em um contexto onde o acesso às plataformas digitais era mais limitado e a interação com esses espaços, menos intensa. Essa exclusão da mulher negra, ainda que profundamente enraizada no racismo estrutural e nos padrões eurocêntricos de beleza, era mais fácil de evitar devido à menor imersão digital e à ausência de redes sociais capazes de amplificar discursos e imagens de maneira tão invasiva. “O racismo estava presente, sempre esteve, mas não era nomeado como tal”, ressalta Indira. Contudo, o avanço da tecnologia e a popularização das redes sociais tornaram quase impossível se manter afastada desse ambiente. A internet transformou-se em um espaço onde a luta por representatividade é inevitável, mas também repleto de desafios, já que discursos excludentes continuam em predominância mesmo em um cenário de maior conscientização e questionamento social. Uma pesquisa da UFRJ, realizada em 2023 por estudantes de Publicidade e Propaganda, revela que 90% de 519 mulheres entrevistadas se sentem desconfortáveis com as imagens perfeitas que veem no Instagram. O estudo expõe um problema que atravessa questões raciais e afeta mulheres de todas as cores. Isso sugere que o impacto dos padrões irreais de beleza promovidos pelas redes sociais é universal, criando um ambiente digital onde a pressão pela perfeição afeta a autoestima de forma ampla. No entanto, esse dado também levanta um questionamento: se mulheres de diferentes origens já se sentem desconfortáveis, como esse impacto pode ser ainda mais profundo para aquelas que enfrentam não apenas os padrões inatingíveis, mas também a exclusão representativa, como é o caso de mulheres negras? Essa reflexão ressalta a necessidade de se pensar em estratégias que promovam uma representatividade mais diversa e genuína, desafiando as narrativas de perfeição homogênea que dominam as plataformas digitais. As redes sociais, por terem a capacidade de amplificar discursos e criar comunidades, têm um papel ambivalente: ao mesmo tempo que perpetuam padrões de beleza excludentes, também podem ser um espaço de luta e afirmação identitária. “A valorização da beleza negra está em crescimento, mas ainda privilegia traços mais brancos. Estamos em processo, mas a luta é longa”, conclui Indira. Entre o scroll e o espelho, mulheres negras seguem refletindo sobre quem são e quem desejam ser. As redes, com todo o seu poder, ainda têm muito a caminhar para se tornarem espelhos reais da diversidade que existe fora das telas.
Canoagem inspira jovens e comunidades
Projeto oferece aulas gratuitas para jovens em situação de vulnerabilidade social Em um mundo onde oportunidades nem sempre são igualmente distribuídas, iniciativas que unem esporte e inclusão social ganham ainda mais relevância. O acesso às atividades esportivas vai além do lazer, promovendo disciplina, trabalho em equipe e esperança para crianças em situação de vulnerabilidade. É nesse contexto que surge o projeto Canoa Viva Vitória, que oferece aulas gratuitas de canoagem havaiana para crianças e adolescentes, transformando a vida de jovens ao introduzi-los a um esporte que carrega tradição e valores culturais. A ideia pôde se tornar realidade a partir da Lei de Incentivo ao Esporte (LIE), do Governo Federal, por intermédio do Instituto Maratonas. As aulas acontecem semanalmente na Praia da Guarderia, em Vitória, para a faixa etária de 11 a 16 anos. “Procuramos um nicho para projeto social que ainda não existia para crianças e adolescentes”, diz Marcio Junqueira, coordenador do Canoa Viva Vitória. Das vagas ofertadas, 75% são para jovens em situação de vulnerabilidade social, que podem se inscrever pelo Instituto João XXIII (no Bairro de Lourdes), pelo Secri (na comunidade São Benedito), e pela Obra Nossa Senhora das Graças (na Avenida Vitória). Os outros 25% das vagas ficam abertas para o público geral, com inscrição através de um formulário online. O programa busca oferecer às comunidades em situação de vulnerabilidade social acesso a um esporte que é tradicionalmente caro e praticado, em sua maioria, por adultos. De acordo com Marcio, isso amplia os horizontes das crianças. “Muitas delas nunca tinham saído das comunidades onde vivem, como jovens de São Benedito e Jaburu”, conta. O coordenador do projeto afirma que os benefícios da canoa havaiana para os jovens são inúmeros. Além da disciplina para não perder aulas e para aprender, o esporte estimula o trabalho em equipe. “A canoa tem 12 lugares e cada um deles representa uma função. Ninguém rema sozinho, tudo é feito em equipe e isso é muito importante”, comenta. Segundo os professores Martin Sousa e Luciene Siccherino, do curso de pós-graduação em Educação Infantil da Universidade Cruzeiro do Sul, “as interações promovidas pelas experiências sociais, permitem a aprendizagem de habilidades e conteúdos, bem como a formação de valores éticos necessários no desenvolvimento moral do ser humano”. Nesse sentido, o esporte inspira compromisso e amadurecimento aos jovens, dando aos mesmos experiências que os ajudarão na vida adulta. Por outro lado, os desafios vão além do financeiro. “A gente teve algumas aulas canceladas devido ao tráfico de drogas em algumas comunidades. Por exemplo, a polícia subiu para matar o traficante e fechou a comunidade. Isso gera um impacto de dois dias de aula na semana”, comenta Marcio. Com isso, a equipe percebeu a necessidade de um amadurecimento para lidar com as questões sociais, passando assim a ser considerada a entrada de assistentes sociais no projeto. Mesmo com dificuldades, o Canoa Viva Vitória continua crescendo e conquistando reconhecimento. Recentemente, foi indicado na categoria de ‘Melhor Projeto Socioesportivo do Ano’ pelo Instituto Américo Buaiz. Além disso, já estão sendo estruturadas novas iniciativas, como aulas de natação na piscina, capoeira, judô, natação no mar e beach tennis. Para sustentar a iniciativa, foram firmadas parcerias com fabricantes de equipamentos e lojas de esportes, além da Federação de Va’a do Espírito Santo e das Associações de Moradores das Comunidades.
Mães empreendedoras
Preocupadas em acompanhar a educação dos filhos de perto, mães passam a tomar mais iniciativas para ter seu próprio negócio. “Ser mãe não é fácil”, frase que todo filho já escutou e que toda mãe já disse pelo menos uma vez. Mães não são apenas mães, elas também são médicas, terapeutas, cabeleireiras, cozinheiras e muito mais. E, a cada ano que passa, as mães vêm participando mais do mercado de empreendedorismo. É o que aponta o estudo de Empreendedorismo Feminino, realizado pelo Sebrae de 2023, que revela que 67% das mulheres empreendedoras do Brasil são mães. Afinal, o ramo oferece diversas vantagens, como renda extra e mais tempo para passar com os filhos, entre vários outros motivos que levam as pessoas a empreenderem. Essa é a realidade de Cenita Guerra, de 57 anos, que começou a empreender quando sua primeira filha nasceu, há 33 anos. Na época, ela saiu do seu trabalho formal para cuidar da bebê, mas ainda precisava fazer algo para gerar uma renda para a família. Foi assim que Cenita se deparou com a possibilidade de empreender, e passou a vender roupas de crianças quando levava e buscava sua filha, Thaiany, na creche. Assim, conseguia mais tempo para conciliar as funções de mãe, dona de casa e trabalhadora, enquanto o marido trabalhava fora de casa. Cenita em um de seus primeiros empreendimentos A empreendedora fez questão de passar o máximo de tempo possível com seus filhos, para oferecer uma infância à qual ela não teve acesso. “Fui criada sem meus pais, e não queria que meus filhos fossem criados longe de mim”, explica. Mesmo trabalhando fora, sua prioridade sempre foi passar tempo com sua família. Empreender possibilita maior flexibilidade de horários, por exemplo, o que facilita a vida de mães que apresentam essa necessidade. “O empreendedorismo, muitas vezes, é uma alternativa às barreiras impostas pelo mercado formal”, comenta Suzana Fernandes Sanches, gestora estadual do Sebrae Delas – programa que visa aumentar a probabilidade de sucesso de ideias e negócios liderados por mulheres. No mundo corporativo, a estrutura rígida de horários e a falta de suporte para a maternidade afastam muitas mulheres, que encontram no empreendedorismo uma saída. Apesar de ter sido beneficiada em sua vida pessoal por ter se tornado empreendedora, Cenita sofreu muito preconceito por ser uma mãe nesse ramo. “Quando você fala que é a dona, as pessoas perguntam se eu não deveria estar em casa cuidando dos meus filhos”, conta, destacando que, na verdade, é possível fazer os dois. Ela também aponta que quando as pessoas entram no estabelecimento sempre se referem ao marido dela, que passou a trabalhar na cantina depois que se aposentou. Por isso, há a necessidade de apoiar mulheres e mães que entram no empreendedorismo. O Sebrae Delas, por exemplo, é uma iniciativa que busca destacar a importância da presença feminina no empreendedorismo, gerando soluções inovadoras e novas maneiras de resolução de problemas. No entanto, Suzana destaca que isso não é suficiente: é vital apoiar o empreendedorismo feminino e materno não apenas pela perspectiva dos negócios, mas para que haja mudanças estruturais e desenvolvimento social. “Mulheres, como qualquer indivíduo, têm o direito de buscar realização profissional, sem que suas escolhas sejam limitadas por expectativas de gênero ou estereótipos”, critica a gestora Além da venda de roupas infantis, Cenita já foi dona de quiosque na praia, de pastelaria e de cantina, onde trabalha até hoje. O empreendedorismo é uma alternativa que permite a promoção da autonomia da mulher; em contrapartida, quem empreende também precisa lidar com a instabilidade e suas diversas variáveis. Muitas vezes, Cenita teve que se adaptar e mudar totalmente de vida para continuar recebendo. “Eu me desdobrava, mas dava conta”, destaca. Algumas vezes, ela precisava levar os filhos para o local de trabalho, quando não tinha onde deixá-los. Mesmo sendo dona dos empreendimentos, ela ainda precisava cumprir um horário fixo. Ao mesmo tempo que trabalhava, precisava garantir que os filhos ficassem comportados e que fizessem os deveres de casa. Às vezes as crianças até ajudavam no trabalho. O trabalho de mãe nunca para. Em 2020, no contexto da pandemia da Covid-19, Cenita precisou fechar suas cantina e inovar novamente. Desta vez, contou com a ajuda da família para fazer comidas e vender pela internet. Fazia pizza, açaí, bolos e muito mais. O marido fazia as entregas, o filho administrava a página da internet e uma das filhas atendia os clientes. “A família toda se uniu nesse empreendimento”, cita. Apesar de todas as dificuldades enfrentadas por Cenita, ela afirma que tudo valeu a pena, e que foi empreendendo que conseguiu fazer parte da infância de seus filhos, algo que sempre sonhou. Mesmo sendo mãe, dona de casa e empreendedora ao mesmo tempo, ela conseguiu um horário mais flexível que facilitava a realização de todas essas dificuldades. O empreendedorismo uniu a família, e isso é o mais importante para uma mãe. Cenita, seu marido e seus filhos: Thaiana, Thielly, Gabryel e Gabriella
O primeiro país nas nuvens
A luta contra o tempo para preservar a identidade e soberania de Tuvalu diante do avanço do mar O que acontece com um país sem terra? O que parece ser uma pergunta sobre uma realidade distante é, na verdade, um dilema que o Estado de Tuvalu enfrenta atualmente. Localizado no meio do Oceano Pacífico, o arquipélago de nove ilhas e pouco mais de 11 mil habitantes e menos de 26 km² de território, está entre os países mais ameaçados pelo aumento do nível do mar causado pelas mudanças climáticas. A previsão é de que em menos de 25 anos metade de Funafuti, a capital que concentra a maior parte da população, ficará submersa. Com uma elevação média de apenas dois metros acima do nível do mar, Tuvalu busca uma solução inovadora para preservar sua identidade, cultura e soberania: a migração para o metaverso. A proposta de migração digital faz parte do “Future Now Project”, que prepara os tuvaluanos para o pior cenário dos efeitos da crise climática. O slogan do projeto “Preparar-se hoje para garantir o amanhã” resume a mensagem que o país busca passar para os líderes globais – em especial aos países com maior pegada de carbono – de que é preciso um maior comprometimento com a redução da emissão dos gases do efeito estufa. O governo de Tuvalu entende que embora as consequências do aquecimento global afetem todos os países, seus efeitos são desiguais. Por conta disso, o projeto tuvaluano consiste em três frentes. A primeira é a promoção dos valores culturais tuvaluanos, com o objetivo de engajar outras nações na luta contra as mudanças climáticas. As outras duas frentes são mais pragmáticas, focadas, respectivamente, na definição de medidas jurídicas que assegurem a soberania de Tuvalu; e a criação de uma nação virtual a partir de um sistema administrativo digital. Esta última também abrange a preservação de documentos históricos, registros culturais e outros materiais valiosos, como textos, imagens e conteúdos multimídia, garantindo sua proteção contra desastres induzidos pelo clima. Hoje, praticamente todas as nações já têm serviços digitais. Para o professor de segurança da informação Gilberto Sudré, a migração digital não é uma questão completamente surpreendente: “Se a gente pensar, por exemplo, no próprio Brasil, praticamente tudo do governo federal é através do Gov.br. Os próprios cidadãos exigem isso, para ter uma resposta rápida dos serviços governamentais. Não é uma questão nova, nesse caso.” Embora a ideia de “tornar-se digital” não seja exclusividade de Tuvalu, já representa um marco significativo, uma vez que vincula essa estratégia diretamente à mobilidade climática, tornando sua experiência pioneira em um contexto de adaptação e sobrevivência. O conceito de mobilidade climática diz sobre o deslocamento de pessoas e cargas causado por eventos climáticos extremos, como o aumento do nível do mar, ondas de calor, queimadas ou inundações. Segundo o ESG Insights, empresa de informação e análises ambientais, sociais e de governança, nas últimas duas décadas, pelo menos 8 milhões de brasileiros migraram por causa de enchentes, incêndios florestais, secas ou o aumento do nível do mar. Não há leis que impeçam De acordo com a coordenadora de relações internacionais da Faculdade de Direito de Vitória, Elda Bussinguer, não há nada, do ponto de vista normativo, que delimite a constituição de Estado como indissociável à existência de um território físico: “Tudo (a jurisdição) está por se constituir”. No entanto, a professora reconhece que seria necessário uma grande força política para movimentar as resoluções internacionais: “Se o contexto de Tuvalu estivesse acontecendo com alguns países maiores, de maior influência política, isso certamente já estaria resolvido”. A constituição de Tuvalu já foi alterada para se adaptar à situação extrema que enfrentam. A emenda declara que o Estado de Tuvalu, dentro de seu marco histórico, cultural e legal, permanecerá no futuro, mesmo que os impactos das mudanças climáticas ou outras causas resultem na perda de seu território físico. Seguindo a segunda frente do “Future Now Project”, Tuvalu também formalizou sua soberania digital em acordos com outros países, tendo assinado agora 12 comunicados conjuntos com as Bahamas, Ilhas Cook, Gabão, República do Kosovo, Ilhas Marshall, Niue, Palau, São Cristóvão e Nevis, Santa Lúcia, Taiwan, Vanuatu e Venezuela. Além disso, as 18 nações do Fórum das Ilhas do Pacífico pronunciaram coletivamente que sua soberania e independência continuarão apesar do avanço do nível do mar, elevando o total atual de países que reconhecem legalmente a soberania digital de Tuvalu para 25. Desse modo, a nação insular encontra um cenário jurídico internacional mais flexível, que começa a questionar a necessidade de um território físico como fundamento de soberania. Contudo, essa mesma abertura não se aplica a outras situações, como as lutas pela soberania de povos como os palestinos e os curdos. Apesar de reivindicarem identidade cultural, histórica e política próprias, esses povos enfrentam barreiras geopolíticas no reconhecimento de seus Estados. Se o conceito de soberania está se desvinculando da existência de um território fixo, as possibilidades de reconhecimento deveriam ser também ampliadas para esses grupos. Luta contra o negacionismo Na visão de Luiz Fernando Schettino, membro titular do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), para além da proporcionalidade das forças políticas, a questão de Tuvalu é uma luta contra o negacionismo: “Não se quer acreditar que isso é um fato e não se está trabalhando na velocidade que deveria. (…) Tuvalu é apenas a ponta do iceberg daquilo que virá”. Sua visão vai ao encontro da opinião da pós-doutora em oceanografia ambiental Kyssyane Oliveira, que acredita que a comunidade científica está “pegando leve” na hora de divulgar o que realmente está acontecendo. Atualmente, a taxa média global do aumento do nível do mar é de 4,5 milímetros por ano, segundo dados do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC). No Oceano Pacífico, as taxas de elevação estão acima da média global, com cerca de 5 milímetros por ano, embora variem em algumas áreas devido a fatores locais. O fato de Tuvalu ser uma ilha com menos de 26 km² torna mais perceptível a perda de território pelo avanço marinho do que