Com mais de 281 mil casos em menos de dois meses e R$ 1,5 bi investidos em medidas de controle, a arbovirose mais temida do país não parece ceder Alice Raimondi Em 2024, o Brasil registrou um aumento de 400% nos casos de dengue em comparação ao ano anterior, totalizando 6,6 milhões de casos prováveis e mais de 6 mil mortes. Apesar da gravidade, 2025 não trouxe campanhas de vacinação em massa, deixando o país vulnerável a novas crises. A vacina do Instituto Butantan, prometida para ampla distribuição, só chega em 2026. Enquanto isso, os primeiros meses de 2025 já somam 281 mil casos e 98 mortes, segundo dados do Ministério da Saúde. O custo econômico também é preocupante. O estudo conduzido pela pesquisadora Josely Marchi Chiarella do Instituto Butantan estimou que a dengue custe ao país mais de US$ 1,2 bilhão anualmente, considerando gastos médicos e despesas indiretas relacionadas ao tratamento de complicações graves. Para o ciclo de 2024 e 2025, o Governo Federal destinou R$ 1,5 bi para ações de controle da dengue e outras arboviroses. Além disso, foram distribuídos 6,5 milhões de testes rápidos inéditos para o diagnóstico em todos os estados do país. Embora essencial para o monitoramento da disseminação da doença, os testes não são amplamente solicitados nos serviços públicos de saúde. A professora Isabela Piva, que contraiu a doença em abril de 2023, testemunha que os testes rápidos são pouco usados nos postos de saúde: “Não sei exatamente qual tipo de dengue eu peguei […], não me foi pedido o exame”. Atualmente, apenas o imunizante Qdenga, do laboratório Takeda, está disponível no Sistema Único de Saúde (SUS), restrito a adolescentes entre 10 e 14 anos. Mesmo assim, a Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm) anunciou que somente metade das doses distribuídas pelo Ministério da Saúde para estados e municípios foi aplicada. O retorno para a tomada da segunda dose também é baixo, prejudicando o desempenho da vacina. Segundo levantamento feito pelo Correio Braziliense, o Espírito Santo ficou no terceiro lugar das unidades federativas com maior número de faltantes da segunda dose. Das 174 mil pessoas da faixa etária de 10 a 14 anos, apenas 72 mil tomaram a primeira dose e pouco mais de 20% desses jovens completaram o esquema vacinal. Para a bióloga do Centro de Vigilância em Saúde Ambiental de Vitória (CVSA), Lívia Marini, o baixo interesse pela vacinação é uma das sequelas deixadas pela pandemia de Covid-19. “O movimento antivacina, que se fortaleceu nos últimos anos, colaborou negativamente para a baixa adesão das vacinas contra a dengue […] Por conta disso, algumas pessoas acreditam que as vacinas não funcionam ou que causam efeitos adversos”, aponta Marini. A desinformação é a maior culpada pela hesitação vacinal. Segundo o Massachusetts Institute of Technology, o potencial de viralização de fake news é 70% maior do que o de notícias verdadeiras. Enquanto uma postagem verdadeira alcança em média 1 mil pessoas, uma falsa pode atingir entre 1 mil a 100 mil usuários. Atrelada ao movimento antivacina, as fake news sobre os imunizantes intensificam a queda na cobertura vacinal do país. A dificuldade nacional de realizar campanhas de vacinação bem-sucedidas reflete desafios estruturais. Entretanto, a hesitação vacinal não é uma realidade só do Brasil. De acordo com dados publicados pela Organização Mundial da Saúde (OMS), a cobertura mundial de imunização infantil estagnou em 2023, causando surtos de sarampo e de outras doenças de fácil combate a partir das vacinas. Mais de 2,7 milhões de crianças foram deixadas sem vacinação ou com vacinação insuficiente em comparação com os níveis pré-pandêmicos em 2019. Na ausência de vacinas para toda a população, o governo prioriza campanhas educativas e o combate ao mosquito causador da dengue. Ações como o “Dia D” de eliminação de focos e parcerias com escolas para conscientização infantil são as estratégias favoritas para engajar a população. Embora válidas, essas medidas são paliativas e estão cada vez mais insuficientes: “As pessoas acreditam que os criadouros estão na casa do vizinho, e deixam de fazer a vistoria em suas casas […] As campanhas de conscientização precisam se reinventar: precisamos de uma comunicação que envolva as comunidades”, argumenta a bióloga do CVSA. Países como Uruguai e Singapura trouxeram soluções inovadoras como a criação de um aplicativo de monitoramento de criadouros de mosquito e multas rigorosas aos cidadãos que tiverem em suas casas água parada com ovos do mosquito. Em contrapartida, o Brasil repete as mesmas táticas das décadas de 1960 e 1970. A dengue se torna, assim, um teste de resiliência para o país. Seu combate eficaz demanda não apenas ciência, mas também cooperação social e reinvenção política — elementos que, hoje, parecem tão escassos quanto as doses de vacina. O que são arboviroses? As arboviroses são doenças causadas por vírus transmitidos por artrópodes como mosquitos e carrapatos. Estas patologias incluem a febre-amarela, zika, chikungunya, dengue e oropouche, todas com potencial para causar surtos epidêmicos. A oropouche, por sua vez, está avançando no Espírito Santo, que concentra 99% dos casos no país. As arboviroses e as mudanças climáticas: O aquecimento global e fenômenos climáticos como o El Niño são catalisadores dos surtos de arboviroses. Temperaturas elevadas e chuvas irregulares criam ambientes ideais para a reprodução de vetores como o Aedes aegypti. Entre 2022 e 2024, o Brasil enfrentou três epidemias consecutivas, correlacionadas a padrões climáticos extremos. A urbanização desordenada também contribui. O acúmulo de lixo nas cidades e a falta de saneamento básico multiplicam os criadouros. Dengue chegou até o Japão: Mesmo sendo doenças de países tropicais e subtropicais, as arboviroses estão expandindo seu alcance geográfico. Com o aumento global das temperaturas, mosquitos como o Aedes aegypti podem se estabelecer em regiões que antes eram consideradas seguras por serem mais frias e, assim, menos favoráveis à reprodução do vetor da dengue. Em 2014, o Japão sofreu um surto de dengue, com mais de 150 casos suspeitos de serem infecções domésticas em Tóquio e em outras áreas, segundo a prefeitura de Sendai. A propagação da doença foi feita pelo Aedes
Editorial
Lara Santoro, editora geral No jornalismo, dar uma informação em “primeira mão” significa sair na frente, noticiar o acontecimento primeiro. É o novo, aquele fato que pega o público de surpresa e que gera mais interesse. Mas aqui, caro leitor, você não vai encontrar temas inéditos, nem furos de reportagem. Aqui, o que é “em primeira mão” são as diferentes angulações de assuntos que já foram tratados pela mídia alguma vez. É a preocupação de trazer um tema de relevância social, mas com outras perspectivas. Essa é a intenção da 160ª edição da revista “Primeira Mão”. O processo de produção foi intenso e desafiador. Mas, no jornalismo, o que não é assim? A elaboração da revista começou com as pautas, que foram pensadas e desenvolvidas pelos estudantes. Depois, elas foram apresentadas para toda a turma e avaliadas coletivamente. O objetivo foi levantar questões que atravessassem o cotidiano da população, e mais especificamente, do estudante universitário, nosso público preferencial. Após a aprovação das pautas, iniciou-se a etapa de apuração, em que as informações foram coletadas e as entrevistas com as fontes marcadas. Foram três semanas de imersão nas reportagens, crônicas e artigos propostos. Um período de dificuldades, mas de muito aprendizado. Fontes que não respondiam, dados difíceis de encontrar, entender a melhor maneira de traduzir o que se deseja… Esses são somente alguns dos obstáculos que a equipe enfrentou. Porém, é um enfrentamento que, para quem ama o jornalismo e tem sede de noticiar a realidade, acaba sendo extremamente satisfatório. E foi com essa satisfação que a turma da disciplina “Gêneros, estilos e discursos em Jornalismo” produziu a 160ª edição da revista Primeira Mão. Durante o segundo semestre acadêmico de 2024, estão previstas mais duas edições da revista. É interesse da equipe, caro leitor, que você aproveite ao máximo. Não somente esta, mas todas as edições que estão por vir. Que você perceba, por meio de nossos textos, que existe muita coisa para além da notícia factual e do furo de reportagem. Os fatos não falam por si só, é preciso entendê-los, contextualizá-los e vislumbrar as perspectivas que existem. Contar as histórias a partir da realidade de quem, muitas vezes, é invisibilizado. Escutar quem, muitas vezes, é silenciado. Entrever aquilo que, muitas vezes, pode estar escondido. Esse é o nosso desejo. Boa leitura!
Reflexo nas telas
Como as redes sociais afetam a autoestima de mulheres negras Ao rolar o feed de uma rede social, mulheres negras se deparam diariamente com imagens que perpetuam um padrão de beleza eurocêntrico. Cabelos lisos e peles claras continuam dominando as telas, enquanto traços afrodescendentes são apagados ou marginalizados. Apesar de avanços na representatividade, a sensação de não pertencimento ainda persiste. “Ver que as maiores influenciadoras raramente são negras faz com que eu me pergunte se existe espaço para nós”, reflete Ana Beatriz Nascimento, uma mulher negra. A falta de diversidade nas redes reflete estruturas históricas de exclusão, nas quais o padrão eurocêntrico continua a dominar não apenas os ideais estéticos, mas também a distribuição de voz e destaque, silenciando populações marginalizadas nesses espaços. Segundo um estudo da agência de influência digital BRUNCH, influenciadores brancos fecham 30% mais projetos do que influenciadores não brancos. Sendo assim, como as mulheres negras irão se sentir representadas na internet se as figuras públicas às quais elas deveriam se identificar não estão sendo postas em evidência? Para a psiquiatra e especialista em neurociência e relações étnico-raciais, Indira Pinto, a falta de representatividade faz com que mulheres tentem mudar características próprias para se aproximarem do padrão estético popular. “É muito comum a queixa de que ‘ainda não foi suficiente’ e ‘não tenho ainda o cabelo com a textura que eu imaginei que fosse ficar’, pontua. A estudante Vitória dos Reis, que também é uma mulher negra, teve a mesma experiência. Quando era criança, alisou o cabelo pela primeira vez para ir a um evento e percebeu uma mudança no comportamento das pessoas à sua volta. “Notei como as pessoas me achavam mais bonita”, lembra. Essa experiência, comum a muitas mulheres negras, demonstra como a busca por aceitação social pode levar à rejeição de traços naturais. Antigamente a falta de representatividade na relação das mulheres com a internet ocorria em um contexto onde o acesso às plataformas digitais era mais limitado e a interação com esses espaços, menos intensa. Essa exclusão da mulher negra, ainda que profundamente enraizada no racismo estrutural e nos padrões eurocêntricos de beleza, era mais fácil de evitar devido à menor imersão digital e à ausência de redes sociais capazes de amplificar discursos e imagens de maneira tão invasiva. “O racismo estava presente, sempre esteve, mas não era nomeado como tal”, ressalta Indira. Contudo, o avanço da tecnologia e a popularização das redes sociais tornaram quase impossível se manter afastada desse ambiente. A internet transformou-se em um espaço onde a luta por representatividade é inevitável, mas também repleto de desafios, já que discursos excludentes continuam em predominância mesmo em um cenário de maior conscientização e questionamento social. Uma pesquisa da UFRJ, realizada em 2023 por estudantes de Publicidade e Propaganda, revela que 90% de 519 mulheres entrevistadas se sentem desconfortáveis com as imagens perfeitas que veem no Instagram. O estudo expõe um problema que atravessa questões raciais e afeta mulheres de todas as cores. Isso sugere que o impacto dos padrões irreais de beleza promovidos pelas redes sociais é universal, criando um ambiente digital onde a pressão pela perfeição afeta a autoestima de forma ampla. No entanto, esse dado também levanta um questionamento: se mulheres de diferentes origens já se sentem desconfortáveis, como esse impacto pode ser ainda mais profundo para aquelas que enfrentam não apenas os padrões inatingíveis, mas também a exclusão representativa, como é o caso de mulheres negras? Essa reflexão ressalta a necessidade de se pensar em estratégias que promovam uma representatividade mais diversa e genuína, desafiando as narrativas de perfeição homogênea que dominam as plataformas digitais. As redes sociais, por terem a capacidade de amplificar discursos e criar comunidades, têm um papel ambivalente: ao mesmo tempo que perpetuam padrões de beleza excludentes, também podem ser um espaço de luta e afirmação identitária. “A valorização da beleza negra está em crescimento, mas ainda privilegia traços mais brancos. Estamos em processo, mas a luta é longa”, conclui Indira. Entre o scroll e o espelho, mulheres negras seguem refletindo sobre quem são e quem desejam ser. As redes, com todo o seu poder, ainda têm muito a caminhar para se tornarem espelhos reais da diversidade que existe fora das telas.
Canoagem inspira jovens e comunidades
Projeto oferece aulas gratuitas para jovens em situação de vulnerabilidade social Em um mundo onde oportunidades nem sempre são igualmente distribuídas, iniciativas que unem esporte e inclusão social ganham ainda mais relevância. O acesso às atividades esportivas vai além do lazer, promovendo disciplina, trabalho em equipe e esperança para crianças em situação de vulnerabilidade. É nesse contexto que surge o projeto Canoa Viva Vitória, que oferece aulas gratuitas de canoagem havaiana para crianças e adolescentes, transformando a vida de jovens ao introduzi-los a um esporte que carrega tradição e valores culturais. A ideia pôde se tornar realidade a partir da Lei de Incentivo ao Esporte (LIE), do Governo Federal, por intermédio do Instituto Maratonas. As aulas acontecem semanalmente na Praia da Guarderia, em Vitória, para a faixa etária de 11 a 16 anos. “Procuramos um nicho para projeto social que ainda não existia para crianças e adolescentes”, diz Marcio Junqueira, coordenador do Canoa Viva Vitória. Das vagas ofertadas, 75% são para jovens em situação de vulnerabilidade social, que podem se inscrever pelo Instituto João XXIII (no Bairro de Lourdes), pelo Secri (na comunidade São Benedito), e pela Obra Nossa Senhora das Graças (na Avenida Vitória). Os outros 25% das vagas ficam abertas para o público geral, com inscrição através de um formulário online. O programa busca oferecer às comunidades em situação de vulnerabilidade social acesso a um esporte que é tradicionalmente caro e praticado, em sua maioria, por adultos. De acordo com Marcio, isso amplia os horizontes das crianças. “Muitas delas nunca tinham saído das comunidades onde vivem, como jovens de São Benedito e Jaburu”, conta. O coordenador do projeto afirma que os benefícios da canoa havaiana para os jovens são inúmeros. Além da disciplina para não perder aulas e para aprender, o esporte estimula o trabalho em equipe. “A canoa tem 12 lugares e cada um deles representa uma função. Ninguém rema sozinho, tudo é feito em equipe e isso é muito importante”, comenta. Segundo os professores Martin Sousa e Luciene Siccherino, do curso de pós-graduação em Educação Infantil da Universidade Cruzeiro do Sul, “as interações promovidas pelas experiências sociais, permitem a aprendizagem de habilidades e conteúdos, bem como a formação de valores éticos necessários no desenvolvimento moral do ser humano”. Nesse sentido, o esporte inspira compromisso e amadurecimento aos jovens, dando aos mesmos experiências que os ajudarão na vida adulta. Por outro lado, os desafios vão além do financeiro. “A gente teve algumas aulas canceladas devido ao tráfico de drogas em algumas comunidades. Por exemplo, a polícia subiu para matar o traficante e fechou a comunidade. Isso gera um impacto de dois dias de aula na semana”, comenta Marcio. Com isso, a equipe percebeu a necessidade de um amadurecimento para lidar com as questões sociais, passando assim a ser considerada a entrada de assistentes sociais no projeto. Mesmo com dificuldades, o Canoa Viva Vitória continua crescendo e conquistando reconhecimento. Recentemente, foi indicado na categoria de ‘Melhor Projeto Socioesportivo do Ano’ pelo Instituto Américo Buaiz. Além disso, já estão sendo estruturadas novas iniciativas, como aulas de natação na piscina, capoeira, judô, natação no mar e beach tennis. Para sustentar a iniciativa, foram firmadas parcerias com fabricantes de equipamentos e lojas de esportes, além da Federação de Va’a do Espírito Santo e das Associações de Moradores das Comunidades.
Mães empreendedoras
Preocupadas em acompanhar a educação dos filhos de perto, mães passam a tomar mais iniciativas para ter seu próprio negócio. “Ser mãe não é fácil”, frase que todo filho já escutou e que toda mãe já disse pelo menos uma vez. Mães não são apenas mães, elas também são médicas, terapeutas, cabeleireiras, cozinheiras e muito mais. E, a cada ano que passa, as mães vêm participando mais do mercado de empreendedorismo. É o que aponta o estudo de Empreendedorismo Feminino, realizado pelo Sebrae de 2023, que revela que 67% das mulheres empreendedoras do Brasil são mães. Afinal, o ramo oferece diversas vantagens, como renda extra e mais tempo para passar com os filhos, entre vários outros motivos que levam as pessoas a empreenderem. Essa é a realidade de Cenita Guerra, de 57 anos, que começou a empreender quando sua primeira filha nasceu, há 33 anos. Na época, ela saiu do seu trabalho formal para cuidar da bebê, mas ainda precisava fazer algo para gerar uma renda para a família. Foi assim que Cenita se deparou com a possibilidade de empreender, e passou a vender roupas de crianças quando levava e buscava sua filha, Thaiany, na creche. Assim, conseguia mais tempo para conciliar as funções de mãe, dona de casa e trabalhadora, enquanto o marido trabalhava fora de casa. Cenita em um de seus primeiros empreendimentos A empreendedora fez questão de passar o máximo de tempo possível com seus filhos, para oferecer uma infância à qual ela não teve acesso. “Fui criada sem meus pais, e não queria que meus filhos fossem criados longe de mim”, explica. Mesmo trabalhando fora, sua prioridade sempre foi passar tempo com sua família. Empreender possibilita maior flexibilidade de horários, por exemplo, o que facilita a vida de mães que apresentam essa necessidade. “O empreendedorismo, muitas vezes, é uma alternativa às barreiras impostas pelo mercado formal”, comenta Suzana Fernandes Sanches, gestora estadual do Sebrae Delas – programa que visa aumentar a probabilidade de sucesso de ideias e negócios liderados por mulheres. No mundo corporativo, a estrutura rígida de horários e a falta de suporte para a maternidade afastam muitas mulheres, que encontram no empreendedorismo uma saída. Apesar de ter sido beneficiada em sua vida pessoal por ter se tornado empreendedora, Cenita sofreu muito preconceito por ser uma mãe nesse ramo. “Quando você fala que é a dona, as pessoas perguntam se eu não deveria estar em casa cuidando dos meus filhos”, conta, destacando que, na verdade, é possível fazer os dois. Ela também aponta que quando as pessoas entram no estabelecimento sempre se referem ao marido dela, que passou a trabalhar na cantina depois que se aposentou. Por isso, há a necessidade de apoiar mulheres e mães que entram no empreendedorismo. O Sebrae Delas, por exemplo, é uma iniciativa que busca destacar a importância da presença feminina no empreendedorismo, gerando soluções inovadoras e novas maneiras de resolução de problemas. No entanto, Suzana destaca que isso não é suficiente: é vital apoiar o empreendedorismo feminino e materno não apenas pela perspectiva dos negócios, mas para que haja mudanças estruturais e desenvolvimento social. “Mulheres, como qualquer indivíduo, têm o direito de buscar realização profissional, sem que suas escolhas sejam limitadas por expectativas de gênero ou estereótipos”, critica a gestora Além da venda de roupas infantis, Cenita já foi dona de quiosque na praia, de pastelaria e de cantina, onde trabalha até hoje. O empreendedorismo é uma alternativa que permite a promoção da autonomia da mulher; em contrapartida, quem empreende também precisa lidar com a instabilidade e suas diversas variáveis. Muitas vezes, Cenita teve que se adaptar e mudar totalmente de vida para continuar recebendo. “Eu me desdobrava, mas dava conta”, destaca. Algumas vezes, ela precisava levar os filhos para o local de trabalho, quando não tinha onde deixá-los. Mesmo sendo dona dos empreendimentos, ela ainda precisava cumprir um horário fixo. Ao mesmo tempo que trabalhava, precisava garantir que os filhos ficassem comportados e que fizessem os deveres de casa. Às vezes as crianças até ajudavam no trabalho. O trabalho de mãe nunca para. Em 2020, no contexto da pandemia da Covid-19, Cenita precisou fechar suas cantina e inovar novamente. Desta vez, contou com a ajuda da família para fazer comidas e vender pela internet. Fazia pizza, açaí, bolos e muito mais. O marido fazia as entregas, o filho administrava a página da internet e uma das filhas atendia os clientes. “A família toda se uniu nesse empreendimento”, cita. Apesar de todas as dificuldades enfrentadas por Cenita, ela afirma que tudo valeu a pena, e que foi empreendendo que conseguiu fazer parte da infância de seus filhos, algo que sempre sonhou. Mesmo sendo mãe, dona de casa e empreendedora ao mesmo tempo, ela conseguiu um horário mais flexível que facilitava a realização de todas essas dificuldades. O empreendedorismo uniu a família, e isso é o mais importante para uma mãe. Cenita, seu marido e seus filhos: Thaiana, Thielly, Gabryel e Gabriella
O primeiro país nas nuvens
A luta contra o tempo para preservar a identidade e soberania de Tuvalu diante do avanço do mar O que acontece com um país sem terra? O que parece ser uma pergunta sobre uma realidade distante é, na verdade, um dilema que o Estado de Tuvalu enfrenta atualmente. Localizado no meio do Oceano Pacífico, o arquipélago de nove ilhas e pouco mais de 11 mil habitantes e menos de 26 km² de território, está entre os países mais ameaçados pelo aumento do nível do mar causado pelas mudanças climáticas. A previsão é de que em menos de 25 anos metade de Funafuti, a capital que concentra a maior parte da população, ficará submersa. Com uma elevação média de apenas dois metros acima do nível do mar, Tuvalu busca uma solução inovadora para preservar sua identidade, cultura e soberania: a migração para o metaverso. A proposta de migração digital faz parte do “Future Now Project”, que prepara os tuvaluanos para o pior cenário dos efeitos da crise climática. O slogan do projeto “Preparar-se hoje para garantir o amanhã” resume a mensagem que o país busca passar para os líderes globais – em especial aos países com maior pegada de carbono – de que é preciso um maior comprometimento com a redução da emissão dos gases do efeito estufa. O governo de Tuvalu entende que embora as consequências do aquecimento global afetem todos os países, seus efeitos são desiguais. Por conta disso, o projeto tuvaluano consiste em três frentes. A primeira é a promoção dos valores culturais tuvaluanos, com o objetivo de engajar outras nações na luta contra as mudanças climáticas. As outras duas frentes são mais pragmáticas, focadas, respectivamente, na definição de medidas jurídicas que assegurem a soberania de Tuvalu; e a criação de uma nação virtual a partir de um sistema administrativo digital. Esta última também abrange a preservação de documentos históricos, registros culturais e outros materiais valiosos, como textos, imagens e conteúdos multimídia, garantindo sua proteção contra desastres induzidos pelo clima. Hoje, praticamente todas as nações já têm serviços digitais. Para o professor de segurança da informação Gilberto Sudré, a migração digital não é uma questão completamente surpreendente: “Se a gente pensar, por exemplo, no próprio Brasil, praticamente tudo do governo federal é através do Gov.br. Os próprios cidadãos exigem isso, para ter uma resposta rápida dos serviços governamentais. Não é uma questão nova, nesse caso.” Embora a ideia de “tornar-se digital” não seja exclusividade de Tuvalu, já representa um marco significativo, uma vez que vincula essa estratégia diretamente à mobilidade climática, tornando sua experiência pioneira em um contexto de adaptação e sobrevivência. O conceito de mobilidade climática diz sobre o deslocamento de pessoas e cargas causado por eventos climáticos extremos, como o aumento do nível do mar, ondas de calor, queimadas ou inundações. Segundo o ESG Insights, empresa de informação e análises ambientais, sociais e de governança, nas últimas duas décadas, pelo menos 8 milhões de brasileiros migraram por causa de enchentes, incêndios florestais, secas ou o aumento do nível do mar. Não há leis que impeçam De acordo com a coordenadora de relações internacionais da Faculdade de Direito de Vitória, Elda Bussinguer, não há nada, do ponto de vista normativo, que delimite a constituição de Estado como indissociável à existência de um território físico: “Tudo (a jurisdição) está por se constituir”. No entanto, a professora reconhece que seria necessário uma grande força política para movimentar as resoluções internacionais: “Se o contexto de Tuvalu estivesse acontecendo com alguns países maiores, de maior influência política, isso certamente já estaria resolvido”. A constituição de Tuvalu já foi alterada para se adaptar à situação extrema que enfrentam. A emenda declara que o Estado de Tuvalu, dentro de seu marco histórico, cultural e legal, permanecerá no futuro, mesmo que os impactos das mudanças climáticas ou outras causas resultem na perda de seu território físico. Seguindo a segunda frente do “Future Now Project”, Tuvalu também formalizou sua soberania digital em acordos com outros países, tendo assinado agora 12 comunicados conjuntos com as Bahamas, Ilhas Cook, Gabão, República do Kosovo, Ilhas Marshall, Niue, Palau, São Cristóvão e Nevis, Santa Lúcia, Taiwan, Vanuatu e Venezuela. Além disso, as 18 nações do Fórum das Ilhas do Pacífico pronunciaram coletivamente que sua soberania e independência continuarão apesar do avanço do nível do mar, elevando o total atual de países que reconhecem legalmente a soberania digital de Tuvalu para 25. Desse modo, a nação insular encontra um cenário jurídico internacional mais flexível, que começa a questionar a necessidade de um território físico como fundamento de soberania. Contudo, essa mesma abertura não se aplica a outras situações, como as lutas pela soberania de povos como os palestinos e os curdos. Apesar de reivindicarem identidade cultural, histórica e política próprias, esses povos enfrentam barreiras geopolíticas no reconhecimento de seus Estados. Se o conceito de soberania está se desvinculando da existência de um território fixo, as possibilidades de reconhecimento deveriam ser também ampliadas para esses grupos. Luta contra o negacionismo Na visão de Luiz Fernando Schettino, membro titular do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), para além da proporcionalidade das forças políticas, a questão de Tuvalu é uma luta contra o negacionismo: “Não se quer acreditar que isso é um fato e não se está trabalhando na velocidade que deveria. (…) Tuvalu é apenas a ponta do iceberg daquilo que virá”. Sua visão vai ao encontro da opinião da pós-doutora em oceanografia ambiental Kyssyane Oliveira, que acredita que a comunidade científica está “pegando leve” na hora de divulgar o que realmente está acontecendo. Atualmente, a taxa média global do aumento do nível do mar é de 4,5 milímetros por ano, segundo dados do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC). No Oceano Pacífico, as taxas de elevação estão acima da média global, com cerca de 5 milímetros por ano, embora variem em algumas áreas devido a fatores locais. O fato de Tuvalu ser uma ilha com menos de 26 km² torna mais perceptível a perda de território pelo avanço marinho do que