Mobilidade urbana ou preservação histórica

Obra no Centro de Vitória levanta debate sobre preservação do patrimônio histórico e funcionalidade urbana


A música “Gentileza”, de Marisa Monte, lançada nos anos 2000, reflete sobre o apagamento cultural, inspirado no profeta Gentileza e nos escritos apagados do viaduto do Caju, no Rio de Janeiro, nos anos 1990. Os versos “Apagaram tudo / Pintaram tudo de cinza” traduzem a perda da memória histórica em prol da modernização. A história e a discussão, 24 anos depois, se repetem em Vitória, Espírito Santo, com a concretagem de pedras centenárias no Centro, desconsiderando o valor histórico em nome da urbanização.

A recente concretagem das pedras que compõem o calçamento do Centro de Vitória, realizada pela Prefeitura em outubro, despertou o debate sobre como equilibrar avanços em mobilidade urbana e a preservação do patrimônio histórico.  A intervenção, que inclui áreas como a Praça Costa Pereira, um dos principais marcos da região, foi criticada por moradores, comerciantes e especialistas. A Prefeitura Municipal de Vitória, quando contatada, não se pronunciou sobre o assunto. Não houveram justificativas sobre o porquê esse serviço foi feito e tão pouco foram pensadas alternativas que atendessem as necessidades de locomoção e ainda sim preservassem as características tradicionais do Centro.  

João Martini, comerciante e morador das proximidades da Praça Costa Pereira, reconhece que o nivelamento do terreno pode facilitar a locomoção, mas considera o impacto histórico negativo: “o Centro é parte da história de Vitória e do Espírito Santo e se liga, principalmente, a nós que vivemos diretamente com a cultura daqui todos os dias. Por mais que talvez ajude na locomoção, um terreno mais plano, acredito na preservação da história e isso mesmo com o avanço da urbanização”.


A Praça Costa Pereira, tradicional palco de manifestações culturais e eventos sociais, foi apenas uma das áreas afetadas por intervenções na tentativa de “revitalizar” o Centro. Para o arquiteto e urbanista, Hugo Mariani Frossard, mestre em Arquitetura e Cidade, ações desse tipo precisam ser melhor planejadas. “Políticas de pavimentação e requalificação dos calçamentos podem trazer benefícios, sobretudo do ponto de vista da acessibilidade. Contudo, em centros históricos, é fundamental priorizar a manutenção das características originais em diálogo com os órgãos responsáveis, o que vem sendo desconsiderado.” 

Frossard também destaca o risco de descaracterização do Centro: “a concretagem das paginações em pedras portuguesas aponta para um processo de transformação da cidade a partir de sua imagem, que pode resultar na desterritorialização do espaço e no apagamento de símbolos históricos e culturais”. Segundo ele, a revitalização da área central, que promete recuperar a relevância histórica do Centro, contrasta com ações como as restrições a eventos culturais tradicionais impostas pela atual gestão. 


O debate em torno da concretagem reflete um dilema que ultrapassa as fronteiras da capital: como repensar as cidades sem apagar suas raízes? 


Embora a transformação do calçamento atenda a demandas por acessibilidade, questiona-se o custo sociocultural dessa mudança. Para Frossard, a discussão deve ser ampliada: “a transformação da cidade nos diz muito sobre nossa relação com a história. Intervenções como essas devem ser o pontapé para repensar a preservação da área enquanto centro histórico”.

Enquanto isso, a ausência de diálogo da gestão municipal com a população e especialistas sobre mudanças na paisagem urbana expõe lacunas na abordagem política e técnica da revitalização do Centro. Para João Martini e outros cidadãos da região, o que está em jogo não é apenas um calçamento, mas a memória coletiva de Vitória, que precisa ser valorizada mesmo em meio às demandas modernas. 

A Primeira Mão é uma revista-laboratório do Curso de Jornalismo da Universidade Federal do Espírito Santo, totalmente desenvolvida por estudantes, sob orientação de professores. Além de sua versão em PDF, a partir de 2024, a revista também conta com uma versão digital, ampliando seu alcance e acessibilidade. Em 2013, a Primeira Mão foi uma das cinco finalistas da região Sudeste para o prêmio Expocom de melhor revista-laboratório impresso.

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