Quem põe a comida na mesa? Conheça a Cooperativa de Agricultura Familiar de Cariacica

Criada em 2017, a organização é a maior produtora de banana orgânica da América Latina, e movimenta o cenário econômico e social da região

A agricultura familiar emprega no Brasil 10 milhões de pessoas, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o que significa 67% da mão de obra do setor agropecuário. Pois é, por mais que o país seja conhecido por exportar quantidades exorbitantes de alimentos, não são essas plantações que geram a maior parte dos empregos, uma vez que são amplamente mecanizadas. Além disso, 70% dos alimentos consumidos em todo o país são frutos da agricultura familiar, segundo o Conselho Federal de Nutrição (CFN), o que evidencia  o tamanho do impacto desse modo de produção no mercado de trabalho e na mesa dos brasileiros.

Os dados, se materializam na realidade: no Espírito Santo, a Cooperativa de Agricultura Familiar de Cariacica (CAFC) já possui 347 cooperados e distribui semanalmente cerca de 60 toneladas de banana. Os destinos das frutas são escolas do Espírito Santo e até as do estado de São Paulo. O alimento que chega para as crianças é orgânico.

O sindicato e a formação cooperativa

Mas nem sempre foi assim. Em 2014, a colaboração entre os agricultores de Cariacica já esteve perto de colapsar. Na época, a cooperativa ainda não existia, apenas o Sindicato dos Trabalhadores Rurais, que enfrentava problemas financeiros. “O sindicato aqui no campo era bem pequeno, num galpãozinho feio, quase caindo. Aí a gente assumiu sem salário, sem nada, e ainda teve que pagar três ações trabalhistas. Começamos a trabalhar mais para a área rural, ajudando o pessoal a se aposentar e resolver as coisas. Mas, mesmo assim, financeiramente não dava pra se manter”, explica Jorge Monteiro, presidente da União Nacional das Cooperativas da Agricultura Familiar e Economia Solidária (Unicafes).

A bananicultura também passava por desafios, pois o produto estava extremamente desvalorizado no mercado. Com isso, os produtores, já fragilizados, cogitaram abandonar suas terras, entendendo que a produção não era mais viável. Mas ainda havia saída. “Então surgiu a ideia: “Nós temos que nos unir para montar uma cooperativa e buscar melhores condições de venda para os produtores” Em junho de 2017, reunimos 20 produtores e fundamos a CAFC”, conta Davi Barcellos, presidente da instituição.

Com o apoio de empresários da região e o esforço de Jorge e Davi, aos poucos os produtores  se reergueram. A antiga sede do sindicato foi demolida para dar espaço a uma nova. Mas, com a ideia da cooperativa, a obra, que havia sido planejada anteriormente, precisou se tornar maior. 

Atualmente, o espaço abriga mercadoria, caminhões, câmaras frias, além de toda a estrutura corporativa como salas de reuniões, escritório e até auditório. A equipe, antes formada apenas por Jorge e Davi, cresceu, e, agora, conta com setores de recursos humanos, financeiro, captação de recursos e um engenheiro agrônomo: resultados alcançados graças à organização coletiva.

Bons negócios

A partir das novas perspectivas, os bons frutos cresceram, não só nas plantações, mas também nos negócios. Agora, os trabalhadores rurais são remunerados dignamente pelo trabalho árduo e as bananas orgânicas produzidas por eles nutrem milhares de estudantes.

“A gente percebeu que precisava se unir para criar um mecanismo de venda. Um pequeno produtor, que às vezes colhe 50 ou 100 caixas de banana, sozinho não teria tanta relevância na produção. Mas quando se juntaram, 20, 30, e hoje já são 347 produtores, isso se tornou muito significativo. O que antes era apenas um pequeno produtor, através da cooperativa, passou a ser parte de um grande produtor em larga escala”, explica Davi.

A busca por diferentes mercados e o apoio governamental possibilitaram um maior crescimento. Além de abastecer escolas do Espírito Santo, a produção também está presente na merenda das escolas de São Paulo. A organização dos trabalhadores faz parte do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), uma iniciativa que visa a garantir refeições de qualidade e ações de educação alimentar. Dessa forma, as escolas utilizam os repasses financeiros do governo federal para adquirir alimentos e priorizam a agricultura familiar.

“Alguns anos atrás a Sedu-ES comprava, em média, cerca de R$ 10 milhões da agricultura familiar. Hoje, esse valor chega a aproximadamente R$ 40 milhões por ano. Isso foi resultado de um trabalho conjunto, com apoio da Unicafes e da Fetaes [Federação dos Trabalhadores na Agricultura no Estado do Espírito Santo], da OCB  [Organização das Cooperativas Brasileiras] e de outras entidades que somaram forças conosco, porque, claro, sozinho ninguém faz nada. Buscamos sempre o diálogo, principalmente com o governo do Estado e com essas entidades parceiras”, explicou Jorge.

O trabalho de prospecção de clientes é realizado principalmente pelos líderes das cooperativas, que realizam articulações políticas e comerciais. No caso da parceria com a Sedu, os cooperados promoveram visitas às plantações para nutricionistas das escolas, que puderam confirmar a procedência dos produtos.

Banana, derivados e empoderamento feminino

Além de um motor econômico, a banana também foi um motor social para a região de Cariacica. Próximo ao bananal da CAFC, em Cachoeirinha, está localizada a pequena fábrica do Grupo 7M, responsável pela produção de bombons de banana, mariola, banana passa, chips e farinha de banana. A organização é composta exclusivamente por mulheres e, originalmente, foi formada por sete trabalhadoras, o que deu origem ao nome do grupo. Essa história de empoderamento feminino nasceu justamente da união das mulheres da comunidade.

“A Associação das Mulheres nasceu em 94. Naquela época, a região de Cachoeirinha, Sabão e Boa Vista era atendida pela Emater de Santa Leopoldina, que hoje é Incaper [Instituto Capixaba de Pesquisa e Assistência Técnica e Extensão Rural]. Tinha uma senhora, a Maria Isabel Frade, técnica da instituição que acompanhava os trabalhos nas comunidades. Ela reunia as mulheres e oferecia cursos de pintura, crochê, bolos, salgados e diversas outras atividades”, lembra Vera Monteiro, idealizadora da ideia e hoje líder do Grupo 7M.

Com o passar do tempo, as mulheres da região sentiram a necessidade de criar uma organização própria, pois na associação dos produtores não havia espaço para discutir os interesses das mulheres. Antes dos doces, Vera trabalhava como auxiliar de limpeza na escola bem ao lado da fábrica, enquanto Lenicélia Silva, também integrante do grupo, era babá. As duas decidiram deixar seus empregos formais para se dedicar à produção dos doces.

Como diz o ditado: se a vida te der limões, faça uma limonada. No caso de Cachoeirinha, a vida deu bananas  e delas nasceu uma boa mariola. A fruta, abundante na região, tinha grande parte das sobras mal aproveitadas e frequentemente acabava desperdiçada.

“Aqui, a lavoura mais abundante é a banana. O problema é que muita banana ficava perdida no ‘juntador’ [equipamento que facilita a aplicação de sacos em volta dos cachos de banana, chamado de embolsador], porque os atravessadores deixavam para trás. A gente então encontrou uma forma de aproveitar esse refugo que estava sendo jogado fora. Esse também foi um dos motivos que nos levaram a reunir pessoas e fazer um movimento para trabalhar esse produto”, completa Vera Monteiro.

Com o passar do tempo, algumas colaboradoras se aposentaram e saíram do Grupo 7M. Hoje ele é formado por 3 trabalhadoras, que também fazem parte da CAFC. Mesmo com a equipe reduzida, os doces de Cachoeirinha continuam a todo vapor. As sobras das bananas já não são mais suficientes, e uma parte maior da produção precisa ser destinada para suprir a demanda.

A fábrica é apoiada pela cooperativa, que por sua vez fornece a matéria-prima, dá apoio estrutural quando necessário e divulga amplamente os produtos. Além disso, uma estrutura para ampliar a fabricação de doces já está sendo montada e a expectativa é que mais empregos sejam criados e que um novo mercado se abra para a cooperativa.

Os doces são vendidos em uma feirinha que acontece toda sexta-feira em algumas lojas específicas da região, no Mercado Municipal de Cariacica e também sob encomenda. Além disso, os doces também já foram produzidos para serem a sobremesa de merenda escolar. 

Preservação ambiental

Para além dos alimentos, a agricultura familiar também tem um impacto enorme na preservação do meio ambiente. Ela é um método de produção que em contrapartida aos outros métodos intensivos, utiliza práticas agroecológicas. No caso específico da banana de Cachoeirinha essa simbiose é evidente.

“A produção orgânica depende muito da consciência do agricultor, mas a gente sabe que é um alimento mais saudável, que chega à mesa sem agrotóxicos ou defensivos. Muitas vezes é, de fato, um alimento mais seguro para quem consome. Além disso, cumpre um papel importante dentro do ecossistema. Por isso, a agricultura orgânica é uma pauta que a gente defende muito, sempre buscando fortalecer ainda mais esse setor no Brasil”, explica Davi Barcellos.

Desigualdades ancestrais

No mais, falar de produção agrícola responsável é tocar também em desigualdades históricas que o país enfrenta no meio rural. Os trabalhadores da agricultura familiar ainda enfrentam dificuldades de acesso ao crédito para a expansão das plantações, não só isso é um entrave, mas também os altos preços dos terrenos, o que muitas vezes impede o crescimento do setor.

“São pequenas propriedades e pequenos agricultores, mas grandes em produção. Quando digo pequenos, falo do tamanho da área, não da capacidade produtiva. O Espírito Santo é um verdadeiro celeiro, e esses agricultores conseguem, em propriedades de apenas 2 ou 3 hectares, gerar muito resultado e até quatro, cinco, dez empregos.

Enquanto uma fazenda de 200 hectares, muitas vezes, tem apenas um funcionário, uma pequena propriedade de 2 hectares envolve quatro ou cinco pessoas trabalhando. E não são “funcionários” formais: é a própria família — pai, mãe, filhos, irmãos, tios — todos produzindo juntos. Isso é o que caracteriza a agricultura familiar.”.

As áreas pequenas mas extremamente produtivas da agricultura familiar expõem outro problema antigo do país: os latifúndios improdutivos. Para entender a questão é preciso voltar ao começo da colonização, no qual o Brasil foi dividido em Capitanias Hereditárias, que, por sua vez, foram doadas pela Coroa Portuguesa a militares e nobres,  tornando-os donatários. Eles tinham o poder de doar pedaços da terra (sesmarias) para pessoas comprometidas em explorar economicamente o espaço. 

Em 1822, após a proclamação da independência, a Lei da Sesmaria foi revogada, e só depois de quase 30 anos, em 1850, uma nova política foi implementada por meio da Lei de Terras. Ela determinou que quem tivesse dinheiro poderia pagar pela terra, o que correspondia a uma nanoparcela da população da época. Isso desenhou a estrutura agrária que até hoje vigora no país.

 “O agricultor quer expandir, ter outra oportunidade, mas não encontra terra para comprar. E, quando encontra, o preço é muito elevado ou se trata de uma área muito grande. O pequeno agricultor, que precisaria apenas de dois, três, quatro ou cinco hectares, não consegue adquirir. Por isso, a política de incentivo à compra de terra através do crédito fundiário reformulado, é muito importante para garantir a permanência da agricultura familiar e do cooperativismo. O crédito, o Pronaf [Programa Nacional de Agricultura Familiar] e esses incentivos de políticas públicas são fundamentais para manter o produtor no campo”, conta Davi.

Por isso, educação e agricultura familiar também precisam se encontrar além da merenda. A formação das cooperativas, além de viabilizar a venda do alimento produzido pelas famílias, também possui um papel socioeducativo. Um dos grandes sonhos da comunidade de Cachoeirinha é a construção de uma escola agrícola na região.

“A gente já tem uma estrutura montada e o nosso próximo passo é criar a primeira escola agrícola do município. Eu acredito que esse será um ponto muito importante para a ampliação e o crescimento dos negócios, e de tudo o que envolve a agricultura familiar. Com a escola, começamos a atrair também recursos federais e novas oportunidades. Já tive conversas com o pessoal do MEC e existe uma grande possibilidade desse projeto sair do papel. Esse é um dos nossos maiores sonhos e metas: trazer uma escola agrícola para a nossa comunidade”, contou Jorge enquanto mostra a estrutura já existente.

Também é papel da cooperativa conscientizar os trabalhadores rurais sobre seus próprios direitos e sobre as possibilidades de crescimento agrário, visto que o êxodo rural ainda é uma realidade no país.  Em 22 anos, a população rural caiu cerca de 34%, queda que vem acelerando nos últimos 12 anos (2010 – 2022), de acordo com o IBGE.

“Ela [a CAFC]  nasceu de uma necessidade, mas hoje a cooperativa fomenta muitas outras iniciativas. Atualmente oferecemos assistência técnica ao agricultor, comercializamos insumos e estamos montando uma fábrica de doces, que deve gerar cerca de 50 empregos diretos. A cooperativa também passou a ter um papel social relevante no município, promovendo cultura e criando oportunidades para os jovens, especialmente os filhos de agricultores, para que permaneçam no campo e deem continuidade à sucessão rural. contou Davi, que também filho de agricultores rurais, e criado em Cachoeirinha. A CAFC vem proporcionando esse trabalho por meio da economia solidária: gerar renda para o pequeno agricultor, oferecer cursos, trazer inovação e incentivar novas culturas.”,  Reinvenção e inovação não param, a cooperativa, aos poucos, testa novas culturas e mercados. Ela já adquiriu um secador de café e testa um novo plantio. Também está adquirindo equipamentos para a ampliação da fábrica de doces.

Todo esse trabalho merecia uma celebração e nos próximos dias 4 e 5 de outubro, a partir das 16h e 6h30, respectivamente, acontece a Festa da Banana. A programação vai contar com apresentações de congo, coroação da princesa da banana, pedalaço da banana, concurso de culinária criativa, tombo do doce da banana e muito mais. A festa vai acontecer em Cachoeirinha, no terreno da cooperativa.

Tão presente na cultura de Cariacica, a banana está até no nome do personagem mais icônico da cidade: João Bananeira. A história conta que João era um escravizado, que, para ir a uma festa dos senhores de engenho, se fantasiou para esconder a sua identidade, a fantasia foi feita com folhas de bananeira. Os participantes da festa, sem descobrir sua verdadeira identidade, adoraram a sua presença e o apelidaram de “Bananeira”. Assim, a história da CAFC e de João Bananeira se conectam pela reinvenção e criatividade, inspirada em uma fruta que agora é símbolo de prosperidade e resistência.

Foto: Victor Thomé
  • SERVIÇO – Festa da Banana (4 e 5 de outubro)
  • Sábado – 4 de outubro de 2025
  • 16:00 – Banda de Congo
  • 17:00 – Abertura do evento com discurso das autoridades
  • 18:00 – Desfile e escolha da Princesa da Banana
  • 20:30 – Maycon Jovi
  • 22:00 – Show com Colibris do Forró
  • Domingo – 5 de outubro de 2025
  • 06:30 – Café da manhã comunitário
  • 07:00 – 1º Pedalão da Banana
  • 08:00 – Recreação Kids
  • 10:30 – Missa Solene
  • 11:30 – Início Concurso Culinária Criativa da Banana (Categorias: Melhor apresentação visual, mais saboroso, mais inovador)
  • 12:30 – Show com Jean da Viola
  • 13:30 – Olimpíadas da Banana (maior comedor de banana)
  • 14:30 – Tombo do Doce da Banana
  • 16:00 – Entrega prêmios vencedores exposição do concurso da banana e culinária
  • 17:00 – Show com Rickson Maioli
  • 19:00 – Show com Lucas Niero
  • Local: Cachoeirinha – Zona Rural de Cariacica.

A Primeira Mão é uma revista-laboratório do Curso de Jornalismo da Universidade Federal do Espírito Santo, totalmente desenvolvida por estudantes, sob orientação de professores. Além de sua versão em PDF, a partir de 2024, a revista também conta com uma versão digital, ampliando seu alcance e acessibilidade. Em 2013, a Primeira Mão foi uma das cinco finalistas da região Sudeste para o prêmio Expocom de melhor revista-laboratório impresso.

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