Reforma do ensino médio: promessas, frustrações e mais mudanças a caminho 


A proposta prometia mais autonomia para os estudantes, no entanto, as dificuldades  logo começaram  a surgir


Rayla Correa

A reforma do ensino médio no Brasil teve início em 2017, quando foi sancionada a Lei nº 13.415. A proposta alterou a estrutura dessa etapa da educação com o objetivo de modernizar o currículo e torná-lo mais flexível. Inspirada em modelos internacionais e alinhada à Base Nacional Comum Curricular (BNCC), a reforma pretendia aproximar o estudante de sua realidade, dos interesses individuais e das exigências do mercado de trabalho.

Desde 2022, a nova organização curricular passou a ser implantada gradualmente nas escolas brasileiras. Com ela, surgiram os chamados itinerários formativos, áreas de aprofundamento escolhidas pelos próprios alunos conforme afinidade ou projeto de vida. A proposta prometia mais autonomia para os estudantes e mais sentido para o que se aprendia em sala de aula. No entanto, as críticas logo começaram a emergir, especialmente entre os alunos da rede pública.

A realidade vista pelos estudantes

Maria Luiza Corrêa Santos, estudante da Escola Irmã Maria Horta, em Vitória (ES), observa que o novo modelo tem gerado mais atrasos do que contribuições para a preparação dos alunos. Segundo ela, no primeiro ano do ensino médio, sua turma não teve aulas de geografia, história e biologia. No segundo ano, disciplinas como sociologia e filosofia também ficaram de fora. “Perdemos conteúdos fundamentais. Estamos em desvantagem em relação às escolas particulares que mantêm todas as matérias. É desigual”, relata Maria Luiza.

Ela também questiona o foco dos itinerários formativos, como mídias digitais e projeto de vida, que, segundo sua percepção, não auxiliam na preparação para o Enem. “Essas matérias não caem na prova do Enem. Não me sinto preparada. Mesmo com o esforço dos professores, temos que estudar por conta própria para recuperar o conteúdo que foi deixado de lado”, afirma.

Evandro Guimarães e Ana Clara Neves, também alunos do segundo ano, compartilham dessa visão e apontam que a reforma não levou em consideração a realidade de quem já estava no meio do ciclo. 

“Nós deveríamos estar nos aprofundando nos conteúdos, mas estamos perdendo tempo com atividades que não contribuem para nossa preparação. Os projetos parecem interessantes no papel, mas, na prática, acabam tomando nosso tempo”, comenta Evandro.

Ele também menciona a ausência de disciplinas tradicionais e sugere outras abordagens. “Filosofia, sociologia e, principalmente, algumas eletivas são matérias que, na minha opinião, poderiam ser substituídas por algo mais voltado ao Enem, como aulas de redação com correções feitas pelos professores”, sugere.

Ana Clara avalia que o novo modelo foi mal planejado e encontrou dificuldades de execução em escolas com pouca estrutura. “Entendo que foi um modelo de ensino aplicado nas escolas do Brasil, mas que foi mal implementado. Escolas pequenas não têm o suporte necessário nem estrutura para aplicar isso. Faltaram aulas e preparo para que os professores pudessem ensinar matérias, como ‘Projeto de vida’ e ‘Estudo orientado’, que são novas e não ajudaram tanto quanto se esperava”, relata.

Ela também destaca que a redução da carga horária em disciplinas tradicionais impactou sua preparação. “Diminuíram a carga horária de matérias importantes, como história, geografia, filosofia e biologia. Em seu lugar, entraram disciplinas que acabaram se tornando aulas vagas. Me sinto despreparada em comparação a colegas de escolas particulares, que tiveram essas matérias e suporte para estudar para o Enem”, afirma.

Sobre o exame nacional, Ana Clara diz que ainda se sente insegura. “Tivemos muitas reduções e os professores agora precisam correr para ensinar conteúdos do primeiro ano. Estamos atrasados e sobrecarregados”, conclui.

O alerta de quem ensina

A ausência de disciplinas como filosofia e sociologia nos primeiros anos do ensino médio também preocupa professores. Edimar Barcelos, professor de filosofia na escola Professor Fernando Duarte Rabelo, em Vitória, afirma que a exclusão compromete a formação crítica dos jovens. “O campo filosófico faz o aluno percorrer contextos históricos importantíssimos para prepará-los para a universidade. E não digo apenas pela competência exigida no Enem, mas também para os estudos mais avançados na graduação”, afirma o professor.

Segundo ele, o impacto é visível no terceiro ano. “Eles chegam desesperados e nós, professores, tentamos dar o melhor. Mas não tem como, em apenas um ano, abordar toda a introdução e os ensinamentos básicos da filosofia. Precisamos do retorno dessas matérias desde o início. Não critico tudo que foi implantado, acho válido, mas não à custa de disciplinas tão importantes”, reitera. 

O olhar de quem ensina

A professora do Centro de Educação da UFES, Gilda Cardoso, aprofunda a análise ao destacar que as mudanças trazidas pela reforma não resolveram os principais gargalos do sistema. “Em que pese a redução da carga horária dos itinerários formativos ser um ponto positivo, os problemas de desigualdade de acesso permanecem. Muitas escolas públicas ainda têm falta de materiais pedagógicos e professores. No Espírito Santo, por exemplo, até julho de 2025 havia instituições sem docentes suficientes para a formação básica”, observa.

Ela também ressalta o risco de perda da formação crítica. “Sem dúvida há perda da educação científica e humanística com a extinção de disciplinas como literatura, artes, filosofia e sociologia. Enquanto as escolas de elite continuam ofertando esse conteúdo, os filhos dos trabalhadores recebem uma formação instrumental, voltada para resultados em testes. Isso amplia a desigualdade educacional.”

Segundo a professora, a lacuna entre escola e universidade se aprofunda quando o financiamento da educação é insuficiente para garantir um padrão mínimo de qualidade. “Mesmo com o aumento do Fundeb, ainda seriam necessários mais de R$60 bilhões para oferecer uma estrutura adequada. Isso inclui laboratórios, bibliotecas, professores com carreira valorizada. Sem isso, a qualidade do ensino não se sustenta”, conclui.

Eliza Bartolozzi, Professora titular da Ufes, aponta que a educação básica brasileira precisa ser mais bem estruturada física e pedagogicamente. “As escolas precisam de mais e melhores espaços físicos, com laboratórios e um número menor de estudantes por sala de aula. Em relação ao currículo, é preciso romper com essa perspectiva simplista de competências e habilidades para que o conhecimento científico seja valorizado e produzido no interior das escolas.” 

Ela finaliza dizendo que os professores precisam ser valorizados profissionalmente, dando prioridade a formação inicial e continuada como uma política pública desenvolvida presencialmente e pelas instituições de ensino superior públicas. 


O que muda em 2025

O Ministério da Educação apresentou uma nova proposta de reorganização do ensino médio, que vigora a partir deste ano. A versão foi elaborada com base em uma consulta pública que reuniu mais de 150 mil participantes em todo o país.

Entre as principais mudanças está o aumento da carga horária da formação geral básica, que passará de 1.800 para 2.400 horas. Os itinerários formativos terão a carga reduzida para 600 horas. O objetivo é reequilibrar o currículo e garantir que todos os alunos tenham acesso às disciplinas essenciais. 

Filosofia, sociologia, artes e educação física voltarão a ser obrigatórias nos três anos do ensino médio, e os itinerários serão organizados com base nas quatro áreas do conhecimento: linguagens, matemática, ciências da natureza e ciências humanas.

“Muitas escolas públicas ainda têm falta de materiais pedagógicos e professores”, 

Gilda Cardoso, Professora de Educação,  Ufes

A Primeira Mão é uma revista-laboratório do Curso de Jornalismo da Universidade Federal do Espírito Santo, totalmente desenvolvida por estudantes, sob orientação de professores. Além de sua versão em PDF, a partir de 2024, a revista também conta com uma versão digital, ampliando seu alcance e acessibilidade. Em 2013, a Primeira Mão foi uma das cinco finalistas da região Sudeste para o prêmio Expocom de melhor revista-laboratório impresso.

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