A quem interessa?


Intervenções no trânsito, falta de diálogo, novos empreendimentos residenciais e valorização imobiliária estão no cenário do atrito entre moradores da Enseada do Suá e Prefeitura de Vitória

As recentes intervenções no trânsito da Enseada do Suá, bairro nobre de Vitória, vêm gerando uma onda de críticas entre moradores, comerciantes e motoristas que circulam pela região. As mudanças viárias, que incluem inversão de mão em vias importantes, retirada de vagas de estacionamento e reconfiguração de acessos, estão sendo realizadas no mesmo período em que avança a construção de um condomínio de alto padrão ao lado do Shopping Vitória, empreendimento que já vendeu 95% das unidades na primeira fase.

A coincidência temporal entre as alterações no trânsito e o novo empreendimento imobiliário levanta discussão sobre a necessidade das alterações e a falta de diálogo com moradores. O tema tem mobilizado protestos da comunidade local e reacendido debates sobre planejamento urbano, mobilidade e os limites do crescimento imobiliário em áreas consolidadas da capital.

Na noite do dia 26 de junho, um grupo de moradores realizou uma manifestação em frente ao Palácio do Café. Entre as principais reclamações estavam a ausência de diálogo prévio com a população, a retirada de vagas de estacionamento e os prejuízos causados ao comércio e à rotina residencial.

Tâmara Vasconcelos, funcionária pública e moradora do bairro, critica a falta de planejamento e os impactos negativos. “Tiraram todas as vagas que existiam aqui na avenida, inclusive as de carga e descarga. Se alguém precisar fazer uma mudança ou uma obra, não tem mais onde parar. Botaram uma mão contrária que só moradores de dois prédios estão usando. Não justifica acabar com todas as vagas e bagunçar o trânsito do bairro.”

O sentimento de indignação é compartilhado por comerciantes, como a cabeleireira Emília da Silva Souza, que atua há anos na região. “Passa muito pouco carro e o dano que tá causando aos moradores e comerciantes é maior do que qualquer benefício. Acho que isso foi um tiro na canela”, lamenta.

Moradores da Rua Clóvis Machado, uma das mais afetadas, também relatam dificuldades. Segundo o despachante aduaneiro Sávio Costa, que vive no local, o acesso ao prédio foi comprometido. “Retiraram todas as vagas, não pode encostar ambulância, Uber, viatura, nem caçamba de entulho para reforma ou mudança. A gente não tem nem onde descer um idoso acamado.”

O síndico do Edifício Novitá, Maurício Pichara, acrescenta que a comunidade não foi ouvida. “Querem transformar a Clóvis Machado em uma avenida para desafogar o trânsito da ponte, mas estão prejudicando os moradores e comerciantes. Precisamos ser ouvidos.”

Ao mesmo tempo em que os impactos sociais se intensificam, o mercado imobiliário da Enseada do Suá vive uma fase de valorização expressiva. O metro quadrado no bairro foi cotado em mais de R$ 13,6 mil em abril de 2025, com uma alta de mais de 30% em um ano, segundo o FipeZap. A região passou a figurar entre as áreas com maior valorização imobiliária do Brasil, atraindo empreendimentos de luxo e investidores.

Para o arquiteto e urbanista, professor da Ufes, Tarcísio Bahia, é provável que o novo empreendimento de luxo tenha influenciado as obras na região. “Talvez não de forma totalmente determinante, mas é possível que tenha havido conversas entre o empreendedor e a prefeitura. De qualquer forma, por exemplo, o acesso à Ilha do Boi e à Curva da Jurema melhorou bastante. Antes havia uma via muito larga em um único sentido, o que parecia um desperdício. Hoje, com as mudanças, há mais fluidez. E isso facilita a vida de quem mora na Ilha do Boi, de quem trabalha por ali e também dos frequentadores nos fins de semana. Com a valorização da área e a chegada de novos empreendimentos comerciais e turísticos, é importante criar alternativas e melhorar a mobilidade urbana”, afirmou.

Tarcísio reforça que não se trata de defender apenas os interesses de moradores da área nobre: “Mas é fato que a cidade precisa oferecer melhores condições de tráfego. Isso é positivo.” Ainda assim, ele faz críticas à forma como o processo foi conduzido. “Na Curva da Jurema, por exemplo, a mudança foi positiva: havia uma faixa larga apenas para saída e agora é possível contornar. Já na Rua Clóvis Machado, onde há muita polêmica, a situação é mais delicada. A prefeitura está impondo uma obra sem dialogar de forma adequada com a população local. Estão eliminando vagas, criando fluxos contrários, e tudo isso sem apresentar devidamente os estudos técnicos. Faltou diálogo.”

Questionado sobre alternativas à intervenção na Clóvis Machado, Tarcísio afirma que outras soluções poderiam ser estudadas. “Não fiz o projeto, então não posso afirmar com certeza. Mas acredito que há outras possibilidades. As soluções não são excludentes. A prefeitura até começou a recuar após pressão do Ministério Público, da imprensa e da comunidade, e isso é muito importante. Se acredita que essa é a solução mais adequada, então que apresente os estudos.”

Procurada pela reportagem, a Secretaria de Obras (Semob) ressaltou que as intervenções do Plano Mobilidade Leste, que abrangem os bairros Enseada do Suá, Praia do Canto, Santa Helena e Praia do Suá, foram construídas com base em diálogo direto com a população e que a Prefeitura recebeu sugestões e acatou diversas propostas apresentadas pelas comunidades, buscando soluções que atendessem aos reais anseios dos moradores.

Além disso, eles garantem que foi realizado estudo do fluxo de veículos locais e metropolitanos, que aprovaram a requalificação viária que inclui revitalização do pavimento, recuperação do sistema de drenagem, implantação de baias e abrigos para ônibus, faixas adicionais para aumentar a capacidade, pavimento em concreto nas baias e sinalização completa.

“A prefeitura está impondo uma obra sem dialogar de forma adequada com a população local. Estão eliminando vagas, criando fluxos contrários, e tudo isso sem apresentar devidamente os estudos técnicos. Faltou diálogo”


Novo condomínio na Enseada do Suá muda formas de uso da região

Tarcísio Bahia, arquiteto e urbanista, professor da Ufes

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