Embora consolidado como Patrimônio Imaterial do Espírito Santo, o congo sofre com a falta de políticas públicas eficazes.
Ana Carolina Brandão e Ana Carolina Dalmaso
O Congo é uma das expressões culturais mais marcantes do Espírito Santo. Surgido durante o período colonial, ele se formou a partir do encontro entre tradições africanas, indígenas e a religiosidade católica europeia. Mesmo em um contexto de repressão, em que práticas culturais de negros e indígenas eram proibidas, o congo sobreviveu e se tornou parte da identidade capixaba.
Presente em diferentes regiões do estado, o congo é vivido nas festas, nos cortejos, nos mastros erguidos com devoção e no som dos tambores e casacas. Em 2014, as bandas de congo foram reconhecidas como patrimônio imaterial do Espírito Santo, e hoje o movimento busca o reconhecimento também em nível nacional.
Cada banda carrega devoções específicas, ligadas a santos como São Benedito, Nossa Senhora do Rosário, Nossa Senhora da Penha e Nossa Senhora da Conceição. Essa diversidade está relacionada à forma como a tradição é praticada em diferentes comunidades, que se adaptam às próprias características.
Mistura originária
No passado, em uma sociedade escravagista e preconceituosa, que bania qualquer prática cultural e religiosa que não fossem as dos europeus, unir elementos dessa cultura com as dos afrobrasileiros e indígenas era uma maneira de manter viva parte de suas crenças e costumes. Essa mistura originou, por exemplo, o congo.
As bandas envolvem músicas, danças, celebrações, com seus mestres, reis e rainhas. Eles realizam um conjunto de ritos, marcados pelo corte, puxada, fincada e derrubada do mastro, como é o caso do congo devoto de São Benedito
Embora tenha surgido no período colonial, determinar uma origem exata para essa manifestação é uma tarefa complexa e, segundo especialistas, até questionável. Entre 2018 e 2020, os pesquisadores e professores da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), José Otávio Lobo Name, e do Instituto Federal do Espírito Santo (Ifes), Elisa Ramalho Ortigão, produziram um projeto de pesquisa da Patrimonialização do Congo no estado, em parceria entre o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan-ES) e a Ufes. Eles elaboraram um dossiê e um documentário sobre o congo capixaba. O material reforça que há diferentes trajetórias, histórias e práticas espalhadas pelo estado.
Cada banda contribui com sua própria memória e modo de fazer. Em vez de buscar um primeiro grupo ou local, os estudos recentes defendem a valorização da diversidade de experiências e das formas como o congo se transformou e resistiu ao longo do tempo.
Para quem se dedica à pesquisa da cultura, tentar definir como e onde tudo começou ou qual foi a primeira banda não é o mais relevante. “Essa questão de ficar elencando o primeiro, o segundo, o terceiro, não faz sentido para a cultura em si”, observa José. A cultura é coletiva e sua história se constrói pela continuidade do costume. Diante disso, as práticas do congo são transmitidas por gerações através da oralidade, da participação e das festas. Essa passagem cultural, que ocorre de modo informal, se dá principalmente pelo legado familiar e pela participação dos mais jovens nas atividades das bandas.
Atualmente, estima-se que existam cerca de 75 bandas de congo em atividade no Espírito Santo. Apesar do reconhecimento como patrimônio imaterial, muitas delas enfrentam sérias dificuldades para se manter. A falta de apoio financeiro e estrutural atinge desde a compra de instrumentos até questões logísticas, como transporte e alimentação durante as apresentações.
Barra do Jucu

“A Barra do Jucu é cultura, sempre foi cultura”, afirma Sebastião Vieira Sampaio, conhecido como ‘Xaxá’, integrante da Banda de Congo Tambor de Jacaranema.
Embora os pesquisadores não possam confirmar, os moradores da Barra do Jucu, bairro localizado em Vila Velha, relatam uma relação centenária com o Congo. Uma tradição passada de geração em geração, vivida por cada local, narra não só o nascimento da prática cultural, mas também do lugar. A Barra do Jucu e o congo nasceram e cresceram juntos e enquanto houver morador na Barra haverá congo. “Eu já tenho 67 anos, participo [do congo] desde quando da barriga da minha mãe, […] É uma tradição que não vai acabar, eu tenho certeza disso”, declara Xaxá.
Segundo a história contada pelo Museu Vivo da Barra do Jucu, a primeira banda de congo da comunidade surgiu no início da década de 1950, mas como Xaxá explicou, antes mesmo da formação de uma banda, o congo já fazia parte do cotidiano do lugar. A prática do congo chegava à comunidade por meio de bandas de regiões vizinhas, especialmente das localidades ribeirinhas, que costumavam se apresentar em festas no bairro. Conforme os moradores da Barra se interessavam e participavam das festividades, o congo foi criando raízes na região.
Além das quatro bandas representadas no mapa produzido pelo Instituto Jones dos Santos Neves (IJSN), Vila Velha conta com mais uma banda, criada em 2018, Raízes da Barra. A mestre da banda, Rosangela Caus, conta que a banda foi fundada através de filhos, netos e bisnetos, com o intuito de manter a cultura viva. “Se a gente não der continuidade, a cultura acaba, o Congo acaba”, diz.

Em conversa para a reportagem, Rosangela explica a importância da prática cultural para além do lugar físico. O congo participa da formação integral do cidadão capixaba, especialmente no desenvolvimento intelectual e social. “Através da escola, do trabalho, de eventos, de tudo que puder levar o conhecimento a quem não tem, principalmente a quem vive em situação de vulnerabilidade, a gente mostra a cultura e traz isso pra perto. Isso ajuda muito”, afirma a congueira.
Além do mais, o coletivo, hoje, faz um trabalho social. Segundo ela, quando a cultura chega ao ambiente escolar, o interesse dos jovens cresce, e o congo passa a ser também uma ferramenta de perspectiva de futuro. “Aprender a tocar um tambor, uma casaca, entender de onde veio a tradição, como nasceu o congo. Tudo isso a gente aplica junto com a educação. Cultura e educação, juntos.”
Dificuldades financeiras
No entanto, há dificuldades enfrentadas no caminho. Manter uma banda exige muito: uniforme, manutenção, instrumentos, locomoção. E tudo isso envolve uma logística. Com cerca de 25 integrantes, a banda Raízes da Barra se sustenta, em grande parte, por conta própria. São os eventos que o próprio grupo organiza que ajudam a cobrir os custos básicos, e sobra bem pouco.
Rosangela reforça a necessidade de suporte e relata que muitos grupos não conseguem acessar editais ou contar com profissionais que os auxiliem na elaboração de projetos. E mesmo quando há, é uma disputa. Para ela, essa não deveria ser a realidade. “O congo é um patrimônio e precisa ser reconhecido e valorizado como tal, com apoio garantido, e não como se fosse uma sorte ser contemplado”, assegura a mestre.
A prefeitura de Vila Velha afirma apoiar o congo por meio de ações. De acordo com o secretário municipal de Cultura, Roberto Patrício Júnior, há hoje cinco bandas cadastradas na cidade, quatro na Barra do Jucu e uma no Centro, e o município busca incluir em eventos. O secretário também cita iniciativas educativas em escolas e oficinas de música que envolvem a tradição.

Porém, na prática, congueiros, ouvidos nesta reportagem, relatam que esse apoio tem sido pouco efetivo diante das demandas dos grupos. Faltam recursos e um diálogo mais próximo com as comunidades envolvidas. Enquanto o poder público destaca ações pontuais, os grupos continuam arcando com custos básicos. Para quem vive o congo na prática, o reconhecimento como patrimônio só será efetivo quando vier acompanhado de investimento, valorização verdadeira e compromisso político.
A professora Elisa Ramalho Ortigão aponta que há um conflito claro entre a vida urbana e a tradição congueira. Para ela, assim como para Rosangela e Xaxá, as bandas sobrevivem por esforço próprio. “As bandas de congo estão localizadas nas periferias das cidades, e o maior número delas se encontra na Grande Vitória. As bandas sobrevivem com recursos próprios e são resistência cultural”, reforçou.
