Medida proíbe contratações públicas de artistas acusados de apologia ao crime e reacende debate sobre racismo cultural e censura à arte periférica
Em Vitória, o projeto foi apresentado pelos vereadores Armandinho Fontoura (PL) e Leonardo Monjardim (Novo). De acordo com o jornal A Gazeta, o texto determina que todos os contratos artísticos financiados com verba pública incluam cláusulas que impeçam práticas que façam alusão positiva ao crime.
O projeto também gerou amplo debate dentro da própria Câmara. Ainda segundo A Gazeta, a vereadora Karla Coser (PT) criticou duramente a proposta, apontando a subjetividade dos termos utilizados no texto. Apesar das críticas, a proposta foi aprovada por 11 votos a favor e 5 contra, e agora segue para sanção do prefeito Lorenzo Pazolini. O texto prevê que artistas que descumprirem a norma sejam penalizados com devolução do cachê e impedimento de novas contratações por até cinco anos.
A lei leva o nome de Oruam, MC e trapper carioca conhecido por retratar em suas letras a realidade da favela e mencionar familiares que estiveram ou estão envolvidos com o sistema prisional. Suas composições, marcadas por narrativas sobre a vida nas comunidades, têm sido alvo frequente de críticas por suposta apologia ao crime, o que inspirou o nome do projeto.
Entrevistamos a socióloga Victoria Ferro, graduada em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) e mestranda em Comunicação e Territorialidades, e para ela a Lei Anti-Oruam representa uma forma clara de controle sobre a cultura periférica. Segundo ela, “sob uma narrativa moralista, a lei busca conter e controlar as expressões culturais vindas das periferias, repetindo um padrão histórico de criminalização da cultura periférica e da sua potência simbólica e política”.
Ferro ressalta que, apesar do discurso oficial de combate à “apologia ao crime”, os artistas como Oruam utilizam suas letras para dar voz a realidades silenciadas pela elite, e a lei funciona como uma “prática seletiva de criminalização, tendo como alvo jovens negros e pobres que veem no funk e outros gêneros uma forma de resistência e transformação social.”
Ainda que a lei tenha sido apresentada com o argumento de proteger a juventude de “influências nocivas”, seus efeitos já começaram a se refletir em ações concretas. Em maio, o funkeiro MC Poze do Rodo foi detido sob acusações de apologia ao crime, associação ao tráfico e lavagem de dinheiro.
Liberado dias depois, a prisão gerou críticas de especialistas que contestam tanto o excesso policial quanto a fragilidade das provas. O portal UOL, em matéria sobre o caso, destacou a decisão do desembargador Peterson Barroso Simão, que considerou a prisão de MC Poze desproporcional. Segundo o juiz, o cantor foi algemado e exposto midiaticamente de forma excessiva, em um procedimento que compromete a regularidade da polícia, reforçando as críticas à forma como o caso foi conduzido.
Lueverson Nascimento, conhecido artisticamente como Luvs, rapper e trapper de São Mateus, no Espírito Santo, confirma a percepção do preconceito cultural na região: “O Espírito Santo ainda é um estado extremamente preconceituoso. Tudo que vem da periferia sofre muito preconceito aqui, menos quando está em festivais elitizados na Grande Vitória”, alfinetou.
A criminalização de gêneros musicais ligados à população negra e periférica não é novidade no Brasil. No início do século XX, o samba foi considerado marginal e sofreu dura repressão policial: sambistas eram fichados, seus instrumentos apreendidos, e apresentações públicas eram frequentemente impedidas. Décadas depois, o funk e o rap passaram a ocupar o mesmo lugar de alvo institucional.
Pesquisadores também alertam para o uso subjetivo do conceito de “apologia ao crime” para censurar determinadas manifestações culturais. Segundo Victoria Ferro, a lei expressa uma violência simbólica ao deslegitimar a cultura periférica e naturalizar a desigualdade. “O funk é posto como algo antiético e perigoso, afastado do conceito de cultura, reforçando uma dualidade que estipula o que é ‘bom’ ou ‘ruim’ e elimina o que é dissonante à visão da elite.”
Ela explica que essa dominação simbólica faz a sociedade acreditar que a cultura periférica representa uma ameaça constante, “fortalecendo argumentos de periculosidade para deslegitimar expressões artísticas de jovens marginalizados”, completou.
A aprovação da Lei Anti-Oruam, nesse contexto, parece menos uma medida de proteção e mais um instrumento legal para silenciar vozes que expressam o incômodo da desigualdade. No fim, o que incomoda não é a menção ao crime, mas quem está falando sobre ele e de onde fala.