A difícil integração de negros e filhos de imigrantes em esportes na Europa

Casos de racismo e xenofobia contra descendentes de africanos ainda são frequentes; o passado imperialista da Europa pode ajudar a entender as origens do preconceito.

Quando a seleção portuguesa venceu a Itália pela Eurocopa sub-17, em maio deste ano, e seguiu para se tornar a campeã do torneio, um episódio transformou as redes sociais num campo de batalha. Logo após a vitória contra a azzurra, uma foto da seleção portuguesa onde havia apenas jogadores negros foi publicada no instagram da seleção. Isso gerou revolta por parte dos portugueses na internet, alegando que a seleção “parecia africana”. Os comentários ofensivos foram ocultados do perfil para evitar uma maior retaliação aos atletas.

Mas, diferentemente do que parte dos internautas alegaram, nenhum dos jogadores que entraram em campo naquela semifinal nasceu em um país da África. Aquele que, de fato, nasceu em solo africano foi Eusébio, considerado um dos melhores jogadores da história e responsável por colocar Portugal no radar europeu na década de 1960.

Esse problema não é novidade em solo europeu. Na década de 1990, a seleção francesa de futebol viveu uma espécie de Guerra Fria contra a Frente Nacional (antigo Reagrupamento Nacional), o partido de extrema-direita do país. A geração black-blanc-beur (ou negra-branca-árabe, em francês) se destacava no futebol europeu da época por sua alta miscigenação e pelo salto de qualidade nos resultados. Isso desagradou a extrema-direita francesa, que muito se orgulhava das seleções nacionais do passado. 

De acordo com Maria Cristina Dadalto, professora do curso de Ciências Sociais da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), especialista em estudos de imigração, este problema surge a partir do sentimento de “colonizador” que ainda persiste na população européia. “É uma população mobilizada pela raiva e pelo ressentimento de quem é entre aspas ‘menor do que você’ ter conseguido atingir um sucesso que o meu filhinho que é branquinho de olhos azuis, loiro e lindo não consegue”, explicou.

Em 1996, um dia antes do confronto entre França e República Tcheca pela semifinal da Eurocopa, veio à público a fonte do ódio à seleção miscigenada: Jean Marie Le Pen, então líder da Frente Nacional, afirmou seu descontentamento com a seleção “artificial” que representava a França. No dia do jogo, 0 a 0 no tempo regulamentar e 6 a 5 para os tchecos nas cobranças de pênalti. França eliminada.

Apesar da constante perseguição aos jogadores por suas ascendências, foi neste mesmo ambiente miscigenado que cada coração francês vibrou com a conquista da primeira taça da Copa do Mundo. Vinte anos depois, o segundo título, mas com a mesma onda racista e xenófoba.

Ao longo dos anos, muitos movimentos tentam descredibilizar os atletas, criando a narrativa de que os mesmos seriam naturalizados, ou seja, jogariam pelo país por acordos políticos e não pelo pertencimento àquela cultura. Outra vez, a narrativa não encontra seus fundamentos, uma vez que a grande maioria dos que defendem o azul francês nasceram dentro do país.

Zinedine Zidane, melhor jogador do mundo em 1998 e filho de argelinos, ergue a taça de campeão do mundo pela França. (Foto: Stewart Kendall/Allstar/Mary Evans/imago)

A questão francesa joga luz sobre outro problema em solo europeu: a crise imigratória. São milhares de civis que chegam pelas fronteiras e tentam a sorte na Europa. Boa parte chega alí fugindo da guerra em seu país, especialmente os da África, que vivencia até hoje as consequências do imperialismo e da divisão arbitrária dos territórios no continente. A Europa agora também encara o desdobrar do que fez há mais de um século.

O PASSADO

Dos 54 países da África, 52 encararam o avanço da Europa sobre as terras que os pertenciam. Falamos aqui do início do século XX e da repartição arbitrária destes territórios para Bélgica, Reino Unido, Portugal etc. “A Europa colonizou o mundo. A América Latina, a Central… as Américas e também os países africanos. E qual é a visão de um colonizador? A visão do colonizador é que você é submisso a ele o tempo todo. Ele é superior a você”, comenta Dadalto

Esta visão de superioridade foi o que balizou todo o domínio Europeu sobre o continente. A partir das divisões forçadas das terras, estava o problema da divisão étnica, onde um mesmo grupo poderia estar fragmentado entre dois países e/ou junto de outra etnia que possuía atritos. A base da configuração geopolítica africana permanece a mesma há pelo menos meio século. Mas durante esse tempo, inúmeras guerras tiraram o sono dos civis no continente, potencializados pelas interferências europeias.

Mapa étnico da África (esquerda) e sua divisão política (direita) (imagem: reprodução/Universidade Federal de São João del-Rei)

Em material publicado pelo Podcast Copa Além da Copa, as questões históricas e sociais que reverberam no território africano são explicadas: a Bélgica estabeleceu no Congo uma colônia privada, o Império Britânico (atual Reino Unido) na região da África Ocidental até a Oriental e Portugal nos litorais, iniciando uma era de opressão dos cidadãos da África e exploração de seus recursos naturais. Ainda hoje, países da região lutam para reaver peças de arte que foram roubadas durante a colonização.

Os longos conflitos étnicos levaram à criação de grupos armados e consolidaram uma série de guerras no território. A insegurança na região motivou e ainda motiva dezenas de famílias a fugirem de suas casas e tentar a sorte em outros países.

Em muitos casos, o racismo deste período é mascarado em tons recreativos, sob o pretexto de ser apenas uma piada. É o que acontece com o personagem Tintim, criado pelo quadrinista belga Hergé em 1929, por exemplo. No contexto da colonização violenta do Congo, surge em 1931 o quadrinho “Tintim na África”. Nesta história em quadrinhos (HQ), Hergé retrata os congoleses como estúpidos e preguiçosos. Os traços grosseiros das personagens muito se assemelham à prática do blackface, maquiagem feita por atores e atrizes brancas para interpretar uma personagem negra. 

Tintim é carregado por congoleses na HQ, reforçando o estereótipo da superioridade europeia. (Foto: Reprodução/Copa Além da Copa)

Ainda nesta HQ, Tintim ensina aos moradores sobre a “pátria belga”, como uma catequese aos indígenas. Questionado em 1975 sobre o contexto racista em sua obra, Hergé se defendeu dizendo que baseou os congoleses no que “ouvia falar” e apoiado pelo “espírito paternalista que prevalecia na época”.

ATUALIDADE

Em 2024, outro caso de agressão racista ocorreu, desta vez envolvendo a considerada melhor jogadora de vôlei da Itália: Paola Egonu. Campeã olímpica em Paris e eleita a melhor jogadora do torneio, Egonu recebeu um mural – de nome “italianidade” – em sua homenagem na cidade de Roma. Porém, o mesmo foi vandalizado, com os criminosos jogando tinta rosa por cima de sua pele negra. Também foi apagado o que estava escrito na bola, que trazia uma mensagem pelo fim do ódio, do racismo, da xenofobia e da ignorância.

Pintura original (esquerda), feita em homenagem à Egonu e seu estado após a vandalização (Foto: Reprodução/EuroNews)

Além de Egonu, havia outras duas jogadoras negras que defendiam o azul e branco italiano: Myriam Sylla e Loveth Omoruyi, também com raízes africanas. Mas é importante notar que há outras jogadoras nascidas fora da Itália que defendem o país, como Ekaterina Antropova (nascida na Islândia e filha de russos) e Sarah Luisa Fahr (nascida na Alemanha). Mesmo neste cenário, recai sobre elas o ódio aos imigrantes. “Você ter a cidadania não significa absolutamente nada. Aliás, para eles é um estorvo. Por que não significa? Porque você não é branco. Quem é branco para o europeu e para o americano? É aquele que nasceu na Europa. Não importa se você chega lá ‘branquinho’, você é um não-branco.” explica Dadalto.

Comportamentos extremistas do tipo por parte dos italianos são exatamente o que pensa Laika, artista de rua e autora do mural. Ao finalizar sua arte, ela declarou ao jornal La Repubblica que a vitória nas Olimpíadas “é um tapa na cara de todos os chamados ‘patriotas’ que não aceitam uma Itália multiétnica, composta de segundas gerações, que não quer o jus solis“.

Entra aqui outros conceitos importantes para entender mais sobre as dificuldades enfrentadas pelos filhos de imigrantes na Europa: a diferença entre jus solis e o de jus sanguinis, termo fundamental para a emissão de uma cidadania.

Jus solis concede a cidadania com base no território em que nascemos. Sendo assim, basta que eu nasça no Brasil para receber a cidadania brasileira, pois respondemos a esse conceito. Assim segue por quase toda a América.

Já o jus sanguinis se refere à ascendência, isto é, a emissão da cidadania baseada na cidadania dos seus pais. O cenário é simples. Uma mãe nigeriana que está grávida e um pai ganês migram para um país que responde ao jus sanguinis. Quando este bebê nascer, a cidadania emitida será a mesma dos pais, ganesa e nigeriana, e não a do país em que nasceu. 

Neste cenário, a cidadania do país em que nasceu será emitida apenas aos que decidirem encarar um longo processo judicial. A maioria da Europa responde a este sistema, tornando este um dos fatores que impedem a integração dos imigrantes em países deste continente.

Assim foi o caso da oposta Paola Egonu, que precisou esperar até os quatorze anos até conseguir uma cidadania italiana, mesmo nascendo no país. Este é o “tapa na cara” que Laika mencionou, o tapa em pessoas que acreditam que um país que responde ao jus sanguinis é um cenário agradável.

Todos os problemas que ocorreram fora da quadra fizeram com que Egonu decidisse se aposentar da seleção no passado, em 2022, quando se sentiu cansada de receber tantas ofensas. A aposentadoria não veio, mas chegou para ela a inédita conquista olímpica.

O FUTURO

Como mencionado anteriormente, a retaliação aos imigrantes na França é encabeçada pela Frente Nacional e os esportes não ficaram de fora. Sua seleção de futebol teve um “boom” de qualidade nos anos 1990. Em 1998, conquista sua primeira Copa do Mundo com um país cada vez mais miscigenado, despertando a ira do político Jean Marie Le Pen. O ex-presidente da Frente Nacional declarou abertamente que não gostava de ver o país que ele amava ser representado por tantas “pessoas de cor”.

De lá para cá, a seleção viveu rebatendo declarações da direita francesa, tornando-se cada vez mais politizada. Grandes nomes como Zinedine Zidane e Karim Benzema (ambos descendentes de argelinos) chegaram até mesmo a não cantar o hino da França em nenhuma partida, pois a mesma glorificava uma terra que se orgulhava de pegar em armas para frear a imigração.

Mesmo que permaneça multiétnica, houve tentativas de acabar com isso. Em 2011, o site Mediapart denunciou uma tentativa da Federação Francesa de Futebol (FFF) de limitar a no máximo 30% o número de negros e árabes na seleção.

Novos casos de racismo e xenofobia contra imigrantes não parecem mera coincidência. Nos últimos anos, a Europa testemunhou um rápido avanço da extrema-direita nos parlamentos e na presidência. O alinhamento dos discursos segregacionistas não deixam margem para crer numa aliança.

Brasil: O racismo não existe só no esporte Europeu

Apesar da grande miscigenação do país, casos de racismo no esporte têm se tornado cada vez mais frequentes, aponta estudo.

humilhados, chamados de macacos e sendo atacados com bananas, jogadores protestam. (foto: reprodução/Agência Brasil)

Durante a segunda rodada da Libertadores sub-20, em março deste ano, um caso de racismo marcou a vitória do Palmeiras contra o Cerro Porteño. No momento das substituições dos jogadores, torcedores imitaram e chamaram os atletas do Palmeiras de macacos. Uma das principais vítimas foi o camisa 9, Luighi.

Após o fim do jogo, Luighi chorou e protestou contra o repórter que o entrevistou, por nem sequer mencionar o caso de racismo. “Até quando a gente vai passar por isso? O que fizeram comigo foi um crime, você não vai me perguntar sobre isso?”, questionou o atleta.

O problema não parou neste momento. Alguns dias depois, durante a disputa de pênaltis na final da Libertadores sub-20, Luighi foi chamado de “chorão” pela torcida rival. Os gritos foram imediatamente relacionados ao episódio anterior.

Situações como essa têm se tornado cada vez mais comuns no cenário do esporte brasileiro. De acordo com a última edição do relatório produzido pelo Observatório da Discriminação Racial no Futebol (ODRF), em 2023 foram registrados 250 casos de racismo no Brasil e no exterior. 

De acordo com Maria Cristina Dadalto, professora do curso de Ciências Sociais da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) e especialista em estudos de imigração, o eurocentrismo não existe somente na Europa e o racismo não difere de um continente para o outro. Além disso, ela aponta que o espaço do futebol se torna palco para esse tipo de expressão racista e xenófoba por causa da grande visibilidade que o esporte concede aos jogadores. Isso por si só causa revolta naqueles que se consideram superiores e não possuem essa mesma fama.

Para ela, há ainda um longo caminho para superar o problema do racismo e da xenofobia. “Para sair do racismo estrutural é preciso de muito tempo. É preciso que se converse sobre isso. É preciso que se assuma que é [racista]. São anos e anos de processo até você chegar lá na frente”, completou.

Em entrevista à Agência Brasil, o diretor do ODRF, Marcelo Carvalho, comentou que é notado um aumento da preocupação dos clubes da CBF em combater os casos de racismo, apesar de ainda não haver punições para quem comete o crime. Para ele, os jogadores, jornalistas e torcedores em geral parecem estar mais conscientes do problema. Porém, é algo que está longe de acabar. “Infelizmente isso não está refletindo nos casos julgados nos tribunais de justiça desportiva. Ao que parece, ali essa conscientização ainda não chegou”, explicou.

A Primeira Mão é uma revista-laboratório do Curso de Jornalismo da Universidade Federal do Espírito Santo, totalmente desenvolvida por estudantes, sob orientação de professores. Além de sua versão em PDF, a partir de 2024, a revista também conta com uma versão digital, ampliando seu alcance e acessibilidade. Em 2013, a Primeira Mão foi uma das cinco finalistas da região Sudeste para o prêmio Expocom de melhor revista-laboratório impresso.

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