A descarbonização prometida e os ventos da realidade

Com holofotes de Nova Iorque, o Fundo de Descarbonização promete um Espírito Santo mais verde. Resta saber se sai do papel e se chega a quem respira longe dos discursos bem iluminados.

Imagine uma promessa de futuro que alcança meio bilhão de reais. Sol, vento, inovação, economia limpa – um novo Espírito Santo que troca as chamas dos combustíveis fósseis pela brisa da sustentabilidade. Parece bonito, e é. Mas antes da emoção, é bom manter os pés firmes no chão.

O Fundo de Descarbonização anunciado com pompa pelo governador Renato Casagrande em Nova Iorque é, sem dúvida, um marco importante. Afinal, não é todo dia que um estado brasileiro anuncia um investimento inédito de R$ 500 milhões para fomentar a transição energética. Mas por trás dos discursos em inglês e das fotos bem iluminadas nos fóruns, há perguntas que resistem como capim-dourado no meio do cerrado.

O que exatamente vai ser financiado? Quem decide? Quais garantias existem se é algo completamente novo? O orçamento vai parar nas mãos de quem já tem placas solares no telhado e startup de verde no nome, ou também chegará aos agricultores das regiões serranas que pagam caro pela energia elétrica?

Responsabilidades para além do papel

“É preciso pensar no fundo não como um troféu, mas como uma responsabilidade. Se não houver critérios rigorosos e controle público, ele pode virar só um cofre bonito de intenções”, alerta Dado Freire, auditor fiscal de Meio Ambiente na Serra e ex-subsecretário da área na prefeitura de Vitória. Ele, que já viu promessas verdes virarem fumaça (literalmente), tem motivos para manter a lupa na gestão.

O Espírito Santo é um estado com um histórico ambíguo. De um lado, há experiências bem-sucedidas como o Programa Reflorestar, que incentivou práticas de recuperação florestal com apoio técnico. De outro, convivemos com atividades intensivas como o polo de petróleo e extração de minério da costa capixaba e indústrias pesadas que ainda não ouviram falar em neutralidade climática — ou fingem não ouvir.

Corporativismo e social andando juntos

Lançar um fundo verde no exterior é bonito. Mas e os mecanismos de participação social? Quem representa as comunidades tradicionais que mais sofrem com os impactos da crise climática? A pressa por aplausos internacionais não pode atropelar a escuta local. “Descarbonizar o Espírito Santo” envolve mais que planilhas: envolve conflitos, disputas, e escolhas políticas. “Quando falamos do setor empresarial, entendo que é difícil conciliar com o lado mais ‘humano’ da coisa. O empresariado está atento, sim, mas precisa de clareza às regras contratuais para se alinhar com o governo”, defende a gerente de Responsabilidade Social Corporativa, Barbara Paiva, que atua em um grupo privado presente no Espírito Santo.

Ineditismo: faca de dois gumes

Outro ponto de atenção está na governança. O montante é gerido com base no Fundo Soberano do Estado, cuja lógica é mais econômica que ambiental. E aqui surge a pergunta incômoda: como garantir que a busca por retorno financeiro não engula os critérios ambientais? Porque, entre financiar um projeto que promete retorno rápido e outro que protege uma bacia hidrográfica em extinção, a escolha pode pender para o lado mais… monetizável.

Ainda assim, o fundo não deve ser descartado. Ele é uma oportunidade, sim — mas uma oportunidade que precisa ser pressionada, fiscalizada, empurrada para ser mais do que marketing verde. Há potenciais reais: financiar startups de energia limpa, subsidiar a troca de matriz energética no campo e investir em qualificação técnica para jovens em áreas de vulnerabilidade. Mas nada disso acontecerá no piloto automático. E menos ainda se a política for tratada como vitrine, e não como ferramenta.

O programa não pode ser apenas um discurso. Esse ato deve desenterrar práticas, rever estruturas, incluir vozes e contrariar interesses. Se o Espírito Santo quiser ser vanguarda climática, vai precisar fazer mais do que anunciar em Nova Iorque — vai ter que escutar o que se diz em Ecoporanga, Cachoeiro, Aracruz…

O fundo pode florescer, sim. Mas só se for regado com transparência, justiça e, sobretudo, compromisso com quem respira o mesmo ar que se quer purificar.

A Primeira Mão é uma revista-laboratório do Curso de Jornalismo da Universidade Federal do Espírito Santo, totalmente desenvolvida por estudantes, sob orientação de professores. Além de sua versão em PDF, a partir de 2024, a revista também conta com uma versão digital, ampliando seu alcance e acessibilidade. Em 2013, a Primeira Mão foi uma das cinco finalistas da região Sudeste para o prêmio Expocom de melhor revista-laboratório impresso.

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