Berenicia Corrêa Nascimento: uma vida moldada no barro

No Galpão das Paneleiras a cultura se mistura com a tradição e a sobrevivência. Na entrada do espaço, dois cachorros se banham no sol da manhã enquanto lá dentro se inicia o dia de trabalho. Moldando panelas, definindo o formato com uma pedra lisa, pisando o barro com os pés para tornar a argila homogênea, queimando panelas na fogueira e amassando as cascas da Rhysophora mangle, o mangue vermelho, para fazer o tanino – pigmento que dá a coloração escura as peças.

Por mais de cinco décadas, Berenicia Corrêa Nascimento transformou o barro em cultura, resistência e sustento. Aos 68 anos, ela carrega no ofício de paneleira um legado familiar que atravessa gerações: é filha, neta e bisneta de paneleiros. “A minha bisavó provavelmente também era paneleira”, conta, com um sorriso no rosto.

Sua história com o barro começou cedo, aos nove anos, quando fazia pequenos brinquedos de argila. Aos 11, se profissionalizou, incentivada pelos compradores da época. “Eles levavam o que a gente fazia, mesmo que não fosse perfeito”, relembra. Desde então, nunca mais largou o ofício. São 55 anos dedicados à confecção da tradicional panela de barro capixaba um patrimônio cultural e imaterial do Brasil. Hoje, além de artesã, Berenicia é presidente da Associação das Paneleiras de Goiabeiras, e já somam 15 ou 16 mandatos ininterruptos, como ela mesma calcula. “Este ano tem eleição de novo, e sou uma das candidatas. Não quero largar pela metade o que comecei.”

A trajetória de Berenicia é marcada também por perdas e superações. Aos 11 anos, viveu um dos episódios mais difíceis da vida: perdeu o pai, de maneira súbita, enquanto retiravam barro no Barreiro do Vale do Mulembá, local de extração da matéria-prima essencial para as panelas. “Meu pai nunca gostava de me levar, mas um dia ele me chamou: ‘Berenicia, vamos comigo’, achei até estranho. Lá, ele começou a cavar o barro, e de repente parou. Se sentou, me chamou perto e falou ‘Eu tô passando mal’, deitou debaixo de uma árvore e faleceu ali, na minha frente.”

Naquela época, a mãe de Berenicia havia falecido há apenas nove meses, vítima de câncer de mama, após lutar por um tempo contra a doença. Com a perda dos pais, a família, composta por sete irmãos, se dispersou. “Cada um foi pra casa de uma tia, da avó, da madrinha…Saímos do nosso lugar”. Anos depois, já casada, Berenicia voltou para o mesmo quintal onde os pais moravam e criou sua família ali, ao lado de irmãos e irmãs. Casada há 49 anos, ela segue vivendo no mesmo espaço, hoje compartilhado com familiares que também vivem da produção das panelas.

A panela de barro sempre foi, para ela, mais do que uma tradição: uma forma de sobrevivência. “Na nossa infância, éramos a família mais pobre de Goiabeiras. Se almoçássemos, não tinha janta. Às vezes, minha avó mandava uma marmita pra dividir entre oito.” Mesmo diante das dificuldades, aprendeu o ofício e continuou o legado de sua família. “O legado que meus pais deixaram pra gente foi esse: fazer panela.”

Entretanto, Berenicia lamenta, com um semblante triste, a falta de valorização do trabalho das paneleiras. “As pessoas vêm comprar a panela, tiram foto, acham bonito, mas não valorizam quem está atrás do balcão, quem faz com as próprias mãos.” Ela destaca que a política pública muitas vezes se resume a ações simbólicas, sem apoio real. “Na pandemia, mandaram fechar o galpão por seis meses. Ninguém veio perguntar se a gente precisava de alguma coisa. Como iríamos sobreviver?”A comunidade resistiu como pôde: com doações, ajuda mútua e muita luta. “A prefeitura mandou algumas cestas, conseguimos um projeto de máscaras, mas foi muito difícil.”

Na baia ao lado, uma das mulheres molda panelas enquanto um cachorro dorme próximo aos seus pés. Curioso com a presença de uma visita incomum, ele se aproxima mas logo vai embora. Apesar do reconhecimento formal – a panela de barro de Goiabeiras foi um dos primeiros bens imateriais tombados no Brasil -, Berenicia aponta que o título não trouxe os benefícios esperados. “É patrimônio nacional, tem indicação geográfica, mas cadê a ajuda? Não temos verba, não temos estrutura. Muitas vezes, gasto do meu próprio bolso pra comprar material, pra registrar uma ata.”

Ela defende que os órgãos públicos deveriam assumir a responsabilidade de manter o espaço e apoiar as artesãs. “Quem conhece a história somos nós, as paneleiras.” Para ela, a falta de reconhecimento se expressa até mesmo na formalização da profissão. “Quando vou abrir conta no banco e dizem: ‘Qual a sua profissão?’ Respondo: paneleira. Mas não existe. Temos que colocar artesã ou ceramista.”

Hoje, ela vê com alegria o quintal cheio: irmãos, irmãs e filhos dividindo o mesmo espaço onde cresceu, todos ligados, de alguma forma, à tradição da panela de barro. E reforça: “Eu faço porque amo, porque é a cultura do nosso estado, e também porque é meu meio de sobrevivência. Só queria que os governantes olhassem mais pra gente, pra quem está aqui, todos os dias, modelando o barro e mantendo viva a tradição do nosso Estado”

A Primeira Mão é uma revista-laboratório do Curso de Jornalismo da Universidade Federal do Espírito Santo, totalmente desenvolvida por estudantes, sob orientação de professores. Além de sua versão em PDF, a partir de 2024, a revista também conta com uma versão digital, ampliando seu alcance e acessibilidade. Em 2013, a Primeira Mão foi uma das cinco finalistas da região Sudeste para o prêmio Expocom de melhor revista-laboratório impresso.

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