O Centro de Vitória surgiu em 1551 e, com o tempo, o local se tornou núcleo político e comercial da cidade, abrigando casarões, praças e espaços que guardam marcas. Andar por suas ruas é perceber como o passado e o presente convivem juntos, em um local que resiste e se transforma. O Centro histórico concentra grande parte do patrimônio arquitetônico tombado ou não da cidade, com edificações de diferentes estilos e épocas, que carregam as mais diversas histórias.
O bairro atravessa um processo de transformação que vai além da simples valorização imobiliária. Embora dados recentes apontam um aumento significativo no preço do metro quadrado (cerca de 15% em 2023, chegando a R$ 3 mil o metro quadrado), a realidade da região é marcada por tensões urbanas, desigualdades e uma “revitalização” que nem sempre contempla a diversidade social e cultural que historicamente caracterizou o território.
O Mercado da Capixaba, o Viaduto Caramuru e o Museu Capixaba do Negro (Mucane) são alguns dos projetos que integram a chamada “revitalização” do Centro histórico de Vitória pelo poder público, em especial pela Prefeitura de Vitória, que diz buscar a requalificação da região central e estimular sua ocupação.
Grande parte da população considera equivocado o termo “revitalização”, pois apaga histórias que sempre estiveram ali. O Centro nunca morreu: sofreu um processo de esvaziamento. A partir das décadas de 1960 e 1970, com a crise da economia tradicional, marcada pela decadência da cafeicultura, e o avanço da industrialização no estado, ocorreu um deslocamento do eixo econômico para a Região Norte da cidade, que passou a concentrar grandes empreendimentos imobiliários, pólos industriais e centros comerciais. Somado a isso, houve também o deslocamento de parte do poder político, judiciário e administrativo, afirma Wallace Bonicenha, historiador e atual presidente da Associação de Moradores do Centro (Amacen). Órgãos públicos, secretarias, tribunais, sedes do governo e empresas passaram a se instalar fora do Centro, principalmente na região da Enseada do Suá, Reta da Penha e adjacências, consolidando um novo centro político e econômico. Isso contribuiu diretamente para o esvaziamento funcional e simbólico do centro histórico de Vitória.
Para muitos moradores, o projeto que está sendo desenvolvido não é visto como uma iniciativa para estimular a preservação da herança que permeia o local, mas sim como uma estratégia para despertar o interesse do setor imobiliário para a região. O professor universitário e morador do Centro desde 2021, Mauro Pinheiro relata que “o que há é um projeto alinhado com o setor imobiliário de olho grande no potencial do Centro”, ele afirma ter visto muitos negócios abrirem e fecharem nos quatro anos em que habita o bairro. Para ele, não existe revitalização e continuam abandonados pela Prefeitura.
Reinaugurado em julho de 2024, o Mercado da Capixaba estava fechado desde 2002, quando foi atingido por um incêndio. Nove meses após a inauguração do espaço restaurado, quatro das 16 lojas foram abertas. Porém, Mauro constata ter visto apenas eventos fechados ocorrendo: na concepção dele, não se vê nenhum verdadeiro Mercado da Capixaba. “É um prédio vazio que tem sido usado para eventos fechados.”, afirma.
Enquanto os gestores da cidade prometiam investir em obras de infraestrutura, a verdadeira revitalização do Centro tem acontecido, em grande medida, pela ação direta de coletivos culturais, artistas independentes e movimentos comunitários. Feiras de produtores locais, saraus, eventos de rua e ocupações artísticas têm devolvido vida a espaços antes marginalizados, como a Praça Costa Pereira, o Parque Moscoso e os arredores da Escadaria Maria Ortiz.
O Centro é esse lugar genuíno, em que a cultura está em cada esquina. Você pode aparecer numa segunda ou quarta-feira e ter um samba em algum lugar porque os artistas estão lá. Encontra-se também o casario histórico que guardam resquícios de um tempo que não existe mais. Os programas artísticos dialogam com o passado e fortalecem a identidade cultural.
Stael Magesck, produtora cultural e moradora do Centro de Vitória, virou referência no processo de reocupação do bairro ao transformar sua casa em um espaço cultural independente há quase 18 anos. Para ela, a movimentação cultural contribui muito para a vida no local e é o que mais aproxima quem está de fora, seja com as feiras, exposições, blocos de carnaval na rua, o Arraiá da (Rua) Sete, a festa de São Jorge na escadaria, entre outros. “Eu sempre defendo que o Centro é o berço da cultura, é genuíno, a cultura que acontece por aqui é onde tudo começou”, diz ela. O bairro passa por momentos de baixa e de alta, algumas pessoas vem, outras vão, mas, de certo modo, a cultura é o que mais movimenta e atrai as pessoas para o lugar. O espaço Casa de Stael, por exemplo, foi criado exatamente pensando nisso.
Os bares e outras atividades comerciais são importantes para a vida do local, mas Stael via a necessidade de outras opções e espaços independentes. Foi então, em 2007, que abriu a Casa da Stael, em um momento em que não havia tantas alternativas. Ambiente com música, poesia, moda autoral, arte capixaba, mostrando que temos cultura e tentando fazer um movimento para atrair pessoas à região, numa época em que não era tão comum utilizar a internet para divulgar nem encontrar esses eventos como hoje em dia. Desde então, sente-se cada vez mais uma defensora da valorização, não da revitalização. “Sempre digo que o Centro não está morto, portanto, não se revitaliza o que não está morto. Mas é preciso ter um olhar de carinho, de sensibilidade para perceber que o Centro tem, sim, seus bens ativos naturais, materiais, históricos, culturais e que precisam ser valorizados.”
Essa valorização, para ela, não tem a ver com o momento em que muitos acham que aumentar o valor de um aluguel, de um imóvel, de compra ou de venda significa que está sendo valorizado. Ela defende a necessidade de políticas públicas que proporcionem melhores condições de mobilidade urbana, segurança e ambientação aprazível para que moradores e turistas se sintam seguros e tenham também desejo de voltar.
“Temos aqui nas adjacências o Morro da Capixaba, o da Piedade e o da Fonte Grande, que são lugares de difícil acesso e muitas vezes dá a impressão de que não fazem parte do Centro, mas fazem. Geograficamente, essa região toda pertence à Regional 1, então é fundamental olhar para esses lugares também”, afirma Stael. Ela reforça a necessidade de incluir os morros nas políticas de mobilidade e infraestrutura voltadas ao Centro: “É preciso pensar em como levar condições dignas para as pessoas que vivem nos morros. Elas moram aqui tanto quanto quem está ‘aqui embaixo’”.
O futuro do Centro de Vitória não se desenha apenas na valorização imobiliária e em projetos de infraestrutura. São iniciativas às vezes invisíveis, coletivas e resistentes que, diariamente, combatem o abandono e mantêm a vitalidade de um lugar que nunca esteve morto, mas sim, negligenciado pelo poder público. A valorização genuína do Centro exige o reconhecimento e o apoio a essas pessoas que, com dedicação, constroem e mantêm a cultura capixaba. É fundamental que as políticas públicas considerem as necessidades de mobilidade urbana, segurança e habitabilidade para todos os residentes, incluindo as comunidades dos morros adjacentes. O verdadeiro desenvolvimento do Centro dependerá do olhar cuidadoso e sensível para seus bens ativos naturais, materiais e históricos, e da escuta ativa daqueles que o vivem e o fazem diariamente.
A percepção dos moradores sobre as ações da Prefeitura e dos coletivos independentes é positiva quando elas respeitam a história, a cultura e valorizam a vida cotidiana, diz Wallace. Rejeitam qualquer iniciativa que traga violência, conflito ou desrespeito. O que buscam é afeto, diálogo e o entendimento de que são uma comunidade diversa, que deseja um encontro intergeracional e étnico, onde jovens, adultos, idosos e diferentes grupos étnicos possam conviver, aprender e construir juntos o futuro do Centro. Os moradores querem ser ouvidos e valorizados, participando ativamente das decisões que impactam suas vidas. Por isso, as ações que promovem inclusão, respeito e fortalecimento da cultura local são as que conquistam o apoio da comunidade. O Centro é um espaço vivo, cheio de histórias e gerações que se conectam, e a política urbana precisa reconhecer e promover isso.