O Brasil é feito de samba 

Conheça um pouco da história do ritmo que se consagrou como símbolo de resistência e conquistou o carnaval para o povo. 

O Brasil iniciou o mês de março com mais uma demonstração do vigor de uma das suas mais expressivas riquezas culturais: o carnaval, movido a samba, alegria, e uma longa história de resistência. O samba é um ritmo musical genuinamente brasileiro. Nascido na Bahia, ele tem suas raízes nos escravizados africanos trazidos ao Brasil no século XVII. Embora sua composição contenha diversos ritmos africanos, o samba se manifesta de forma única no país. “Massemba é um ritmo africano de Angola, que é o pai do semba e do samba.

O ritmo que nasce no Recôncavo Baiano é o samba de roda, que vem através da batida cabula. Essa batida é muito usada nos cantos dos terreiros da Nação Angola de candomblé (…) E é essa batida que origina o samba no Brasil”, explica o sambista Tunico da Vila. Desse modo, pode-se dizer que a forma mais ancestral do samba é o samba de roda baiano. No entanto, o ritmo ganhou novos contornos ao ser levado para o Rio de Janeiro, onde se espalhou pelas favelas e originou vertentes como o maxixe e o partido-alto.

Com o passar do tempo, o samba continuou evoluindo. Nos anos 1990, surgiram os primeiros grupos de pagode. A palavra “pagode”, em sua definição original, significa uma reunião de sambistas. Embora muitos considerem o pagode, o samba de breque, o partido-alto e o samba-enredo como estilos distintos, todos pertencem à grande família do samba, diferenciando-se apenas pelas suas características específicas. O samba consolidou-se como um dos ritmos mais diversos do mundo e, em reconhecimento à sua importância cultural, foi declarado patrimônio imaterial da humanidade pela Unesco.

As escolas de samba e o carnaval 

Dois anos após a Lei Áurea entrar em vigor no Brasil, a legislação criminalizou a chamada “vadiagem”. Segundo a nova lei, qualquer cidadão que fosse abordado na rua e não comprovasse estar trabalhando poderia ser preso. O samba também foi enquadrado como crime, refletindo não apenas uma questão “legal”, mas o preconceito de uma sociedade extremamente racista, recém-saída de um regime escravocrata. Bastava estar de posse de um instrumento de percussão, ter calos nos dedos ou participar de rodas de capoeira para ser punido.

Foi apenas a partir da década de 1930, durante o governo nacionalista de Getúlio Vargas, que o samba passou a ser reconhecido como símbolo nacional. A primeira escola de samba surgiu em 1928, no Rio de Janeiro, com o nome “Deixa Falar”. As escolas de samba nasceram como associações populares e representaram o início da legalização do ritmo, além de possibilitarem a participação das camadas mais pobres no carnaval.

Antes delas, o carnaval era uma festa exclusiva da elite, que promovia bailes de máscaras, corsos e ranchos carnavalescos, com desfiles luxuosos e trajes sofisticados. A entrada das escolas de samba no cenário carnavalesco mudou essa dinâmica, apesar da resistência e perseguição inicial. Dessa forma, participar do carnaval se tornou um ato de afirmação cultural e social, permitindo que diferentes grupos expressassem suas ideias, valores e tradições por meio da festa popular.


Dos passeios carnavalescos aos desfiles das escolas de samba

O carnaval capixaba acontece desde antes de 1880, começando no Centro de Vitória, mas era uma festa completamente diferente da que conhecemos hoje. Em seus primórdios, o carnaval surgiu pela apropriação de elementos da Igreja Católica, e os desfiles eram, na verdade, procissões religiosas adaptadas para questões mundanas.

O primeiro trajeto registrado, em 1885, não era chamado de desfile, mas sim de passeio. Nessa época, os foliões já usavam fantasias e percorriam as principais ruas do Centro de Vitória. No final do século XIX, surgiu a proposta de combater o carnaval elitista dos clubes e levar a festa para as ruas. Assim, em 1910, o Parque Moscoso tornou-se o palco principal do carnaval na cidade. No entanto, os desfiles só começaram a tomar a forma que conhecemos hoje com a popularização dos automóveis.

Na década de 1920, a população passou a se organizar em grupos, descendo dos morros para as ruas centrais, como a Rua Sete de Setembro e a Gama Rosa. Nesse período, os desfiles começaram a ganhar força, com foliões usando fantasias e carros como alegorias simples para, de fato, popularizar o carnaval. Ainda não havia uma comissão julgadora, mas a classe trabalhadora foi essencial nesse processo, reunindo o maior número possível de participantes para aplaudir os desfiles e eleger os vencedores.

Nos bairros de Santo Antônio, Vila Rubim, Cruzamento e Praia de Santa Lúcia, o carnaval já tinha tomado corpo, e foi nesses locais que surgiram as primeiras carrocerias de caminhões alegóricos — os precursores dos carros alegóricos atuais. Por fim, foi estabelecido que as festas realizadas no Clube Álvares Cabral, na Avenida Beira-Mar, terminassem nas ruas e na Praça Costa Pereira, consolidando o Centro de Vitória, como o epicentro da folia.

A virada do século XIX para o XX trouxe novas tecnologias, como gramofones, discos e rádios, que mudaram a forma de celebrar o carnaval. Nas ruas capixabas, já se ouviam maxixes, lundus e sambas, evidenciando a forte influência afro-brasileira na festa.

A historiadora Dione Ferolla descreve as escolas de samba como a festa dos pobres no carnaval. Esse espírito popular se fortaleceu em 1955, quando a Unidos da Piedade, seguida por uma multidão, desceu o Morro da Fonte Grande e desfilou sobre a passarela montada pela Prefeitura de Vitória em frente ao Palácio Anchieta. Esse momento marcou o início de uma nova era para o carnaval capixaba.

Ao som de “A estrela d’alva no céu desponta e a lua anda tonta, com tamanho esplendor”, a Unidos da Piedade levou para as ruas a paz e a tradição do seu morro. Com o tempo, suas batucadas deram origem a novas escolas de samba, expandindo ainda mais a cultura carnavalesca no Espírito Santo. Nos anos 1990, o estado chegou a contar com 19 escolas de samba, além dos blocos que desfilavam pela avenida, consolidando o carnaval capixaba como uma expressão vibrante da identidade e resistência popular.

Piedade, A primeira escola de samba

A escola de samba mais antiga do Espírito Santo é a Unidos da Piedade. Os morros do Centro de Vitória são territórios negros, berço do samba capixaba. Do alto da Piedade e da Fonte Grande, surgiu, em 1955, a primeira escola de samba do estado: a Unidos da Piedade. 

Há 70 anos, a escola se mantém como um espaço de resistência, luta e força. Embora o samba tenha vindo de outras regiões para o Espírito Santo, ele conquistou seu espaço no coração da capital. A tradição se mantém viva nas escolas de samba, nos bares como o icônico Bar da Zilda, e nas rodas de samba raiz — manifestações culturais profundamente ligadas à herança afrobrasileira.

O historiador, produtor cultural, vereador e atual presidente da Unidos da Piedade, Jocelino Junior, relembra sua trajetória no samba. “O samba entrou na minha vida por meio do meu pai, um apaixonado pelo carnaval, que me levou para o mesmo caminho. O samba tem o poder de atravessar gerações. Hoje, meus filhos participam de tudo comigo na comunidade, e vejo que isso acontece com outras famílias também. É um elemento de integração muito forte, que, apesar de se desenvolver em um contexto de pobreza, é a diversão de muitos. Tenho um papel ainda mais fundamental sendo um homem negro. Acredito que é necessário fazer justiça pelos meus, lutar pela valorização da cultura do meu povo. Antes, não era permitido fazer samba, mas a gente resistiu e continua resistindo”, afirmou.

Desde sua origem, o samba sempre foi uma manifestação política — e, muitas vezes, incômoda para o poder. A gestão do atual prefeito de Vitória, Lorenzo Pazolini, tornou-se conhecida por adotar medidas que dificultam o carnaval de rua, como a demora na regulamentação dos blocos, efetivada em 2024, apenas 13 dias antes da festa. Em 2023, os desfiles dos blocos que encerram o carnaval no Centro de Vitória foram impedidos de acontecer após a prefeitura suspender os alvarás das festividades, acatando uma recomendação do Ministério Público do Espírito Santo (MPES). O argumento utilizado foi o excesso de ruído e o acúmulo de lixo. No entanto, mesmo sem apoio e recursos, essas manifestações culturais seguem resistindo e ocupando as ruas, reafirmando o samba como símbolo de luta e identidade popular.

O presidente da Unidos da Piedade acredita que o samba não consegue escapar das lógicas do capitalismo, mas que ele deve continuar sendo um espaço de enfrentamento político e social. “Todo espaço da população em situação de vulnerabilidade é impactado pelo capitalismo. O samba tem grandes patrocinadores, grandes empresas que investem, porque os desfiles das escolas de samba precisam de muita verba. Mas a gente tem que voltar à essência do samba, da simplicidade, do coletivo. Não dá para gerir uma escola ou um grupo de samba e se deixar levar pelo dinheiro. Samba sem povo não é samba. Tem que ter comunidade, amor, raízes, afeto e felicidade. O samba precisa continuar sendo um ato de transformação social, uma forma de garantir direitos ao nosso povo. A nossa cidade é melhor quando tem samba. Nosso povo é mais feliz.”


Carnaval de rua Se fortalece 

O carnaval de rua do Espírito Santo tem origem na tradição popular e na resistência cultural das comunidades. A popularização do carnaval de rua ocorreu no início do século XX, com a chegada dos cordões e ranchos que mobilizavam a população. 

Com a consolidação das escolas de samba na década de 1950, o carnaval capixaba passou a ter dois grandes eixos: os desfiles das escolas e o carnaval de rua. Nos bairros, surgiram blocos tradicionais que resistiram ao tempo e permanecem até os dias atuais, como os blocos de Santo Antônio, Vila Rubim e Centro de Vitória. Esses grupos mantêm viva a tradição do samba de rua e garantem que a festa permaneça acessível a todos.

Nos últimos anos, o carnaval de rua de Vitória e do Espírito Santo ganhou ainda mais força, com um número crescente de blocos independentes que arrastam milhares de foliões pelas ruas da capital e demais cidades do estado. Blocos como “Regional da Nair” e “Kustelão” reúnem foliões de todas as idades e classes sociais, reafirmando o carnaval de rua como um espaço democrático de celebração e resistência cultural. Apesar das dificuldades, como falta de incentivo público, restrições impostas pelo poder municipal e até tentativas de redução do horário de circulação dos blocos, a luta e a resistência continuam, mostrando a força do povo e garantindo a alegria dos foliões. O carnaval de rua do Espírito Santo, assim como em outras partes do Brasil, segue sendo um espaço de diversidade, criatividade e, sobretudo, pertencimento popular.

A Primeira Mão é uma revista-laboratório do Curso de Jornalismo da Universidade Federal do Espírito Santo, totalmente desenvolvida por estudantes, sob orientação de professores. Além de sua versão em PDF, a partir de 2024, a revista também conta com uma versão digital, ampliando seu alcance e acessibilidade. Em 2013, a Primeira Mão foi uma das cinco finalistas da região Sudeste para o prêmio Expocom de melhor revista-laboratório impresso.

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