Sem escuta para a pele que habita

A terapia sem recorte e letramento racial silencia a dor de pessoas negras.

Você faz terapia? Já se sentiu invisível em um espaço onde deveria ser acolhido? Já falou sobre sua dor para alguém que, ao invés de escutar, te devolveu o silêncio? Aliás, você se sente acolhido durante suas sessões? Se a resposta da segunda pergunta foi “sim”, ótimo. Mas essa não é a realidade de todas as pessoas negras. Muitas encontram psicólogos, terapeutas, psicanalistas e analistas sem letramento racial, o que pode gerar danos à saúde mental. 

Nas paredes brancas e nos sofás acolchoados de muitos consultórios de terapia, ou através das telas de consultas online, as histórias de racismo e exclusão ainda são tratadas como questões individuais. Para Ana Karolina, uma jovem negra de 27 anos, a experiência foi reveladora: “Eu falava sobre os olhares desconfortáveis no trabalho, o incômodo com meu cabelo crespo, e o terapeuta dizia que talvez fosse ‘paranoia minha’. Saí me sentindo mais invisível do que nunca”.

Ana, não está sozinha. Um dado preocupante ilustra essa realidade: 68% das mulheres negras já sofreram racismo durante os atendimentos médicos, segundo o Instituto AzMina. Embora essa estatística se refira a todas as áreas da saúde, ela inclui também a prática terapêutica, mostrando que o despreparo dos profissionais é um problema estrutural.

A técnica de enfermagem Joyce, procurou a terapia quando já tinha o diagnóstico de ansiedade e síndrome de pânico. Na época, por falta de grana, buscou ajuda profissional no centro de saúde em que sua mãe trabalhava. A jovem relata que foi atendida por uma terapeuta, mas logo após a primeira sessão a profissional entrou de férias e ela ficou 30 dias sem atendimento. No retorno, Joyce mencionou uma dificuldade com sua autoestima e insegurança, e a terapeuta nem a ouviu direito. “Ela falou que meu primeiro problema eu já tinha conseguido resolver e que eu já estava dispensada das sessões com ela, sem ao menos tocar no assunto da autoestima que eu comentei”, lembra a técnica.

Levou um tempo para que Joyce conseguisse se abrir; ficou três anos sem procurar ajuda, por receio de acontecer novamente, e nesse tempo teve uma piora psicológica drástica. Hoje, em terapia com uma mulher negra, ela vem tratando o que viveu fora e dentro do processo terapêutico, com mais acolhimento em relação às suas questões raciais. 

Joyce e Ana não foram as únicas vítimas de situações como essas com terapeutas não negros. Estudiosos sobre saúde mental e população negra têm apontado as violências que podem acontecer quando o psicólogo não tem letramento racial.  No estudo “Psicoterapia, raça e racismo no contexto brasileiro: experiências e percepções de mulheres negras”, todas as entrevistadas manifestaram um tipo de afastamento de uma parceria racial com a terapeuta negra e temor de não ser entendida pela terapeuta branca. Uma das entrevistadas continha-se quanto a levar à terapia suas vivências de racismo: “[…] eu não vou nem discutir isso com ela porque ela [terapeuta branca] não vai me entender”. 

A psicóloga e especialista em Psicoterapia racializada e Terapia cognitiva comportamental, Cláudia Sales, considera que a saúde mental de pessoas negras precisa ser abordada com o reconhecimento de que a dor racial existe. Sem isso, a terapia reforça a violência em vez de curar. O trauma racial, definido pela psicóloga americana Joy DeGruy como o impacto cumulativo do racismo sobre a psique, é um elemento muitas vezes ignorado em abordagens terapêuticas tradicionais. Nesse raciocínio, é uma reação a experiências de racismo, incluindo violências e humilhações, também podendo ser chamado de estresse traumático baseado na raça.

Quando a saúde mental da população negra é discutida, é necessário pensar nos atravessamentos que consiste ser uma pessoa negra no Brasil. Segundo Cláudia, o mito da democracia racial no Brasil contribui para que muitas pessoas negras demorem a reconhecer sua identidade racial ou para que percebam como o racismo interfere em suas vidas. Esse desconhecimento, somado ao despreparo de muitos profissionais, pode resultar em diagnósticos equivocados ou abordagens ineficazes.

Ao atender pessoas negras diariamente, a psicóloga observa que relatos de pacientes mostram que um terapeuta sem letramento racial pode reforçar o peso do racismo estrutural, sendo ineficaz no acolhimento. A importância de um processo terapêutico com letramento racial está em se debruçar tanto nas questões subjetivas da pessoa quanto nas sociais, fazendo com que o paciente entenda de onde vem essa insegurança. “Pessoas negras sentem que só podem falar coisas que pessoas brancas querem ouvir. Falas autônomas não são bem-vindas”, explica Cláudia. Essa tendência pode também ser agravada ou atenuada conforme a condução do profissional. 

Quando não é analisado de acordo, o recorte racial pode ter impactos profundos e prolongados na vida de uma mulher negra. A insegurança dessa parcela da população pode ser reduzida a um caso simples de baixa autoestima, como o caso de Joyce, ou a comportamentos como o “fenômeno da impostora”, que é quando a pessoa acredita que não tem conhecimento ou autoridade para falar de determinado tema, mesmo tendo total condições. Ao diagnosticar erroneamente uma questão sistêmica como um problema individual, a mulher negra pode ser responsabilizada por sua própria dor, o que reforça narrativas de autossuficiência e culpa. Em vez de enxergar que a sociedade é estruturada de maneira a diminuir sua voz, sua presença e sua legitimidade, ela pode internalizar a ideia de que precisa simplesmente “se esforçar mais”, “acreditar mais em si mesma” ou “superar suas inseguranças”, ignorando os fatores externos que a colocam nessa posição de vulnerabilidade. 

A Primeira Mão é uma revista-laboratório do Curso de Jornalismo da Universidade Federal do Espírito Santo, totalmente desenvolvida por estudantes, sob orientação de professores. Além de sua versão em PDF, a partir de 2024, a revista também conta com uma versão digital, ampliando seu alcance e acessibilidade. Em 2013, a Primeira Mão foi uma das cinco finalistas da região Sudeste para o prêmio Expocom de melhor revista-laboratório impresso.

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