O Consultório na Rua atende a população em situação de rua que não tem acesso a Unidades de Saúde
Um a cada mil brasileiros não tem acesso à moradia. De acordo com pesquisa do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC) de 2023, são 236.400 pessoas vivendo em situação de rua no país. Como os outros cidadãos do Brasil, elas têm direito ao acesso à saúde. Porém, esse direito não é atingido no dia a dia dessa população. Às vezes, a pessoa tem o atendimento negado, por estar suja ou com mal cheiro, ou apenas por se encontrar nessa situação. Na prática, o serviço que deveria ser universal não atende todos os cidadãos.
Foi a partir da análise deste cenário que o Consultório na Rua (CnaR) foi criado pelo Governo Federal, em parceria ao SUS, visando ampliar o acesso da população em situação de rua aos serviços de saúde. O programa é formado por uma equipe multidisciplinar de enfermeiros, médicos, assistentes sociais, terapeutas ocupacionais e psicólogos, que acolhem e oferecem tratamento a pessoas em situação de rua. Os profissionais trabalham de maneira itinerante, apoiando-se nas unidades de saúde quando há necessidade. Porém, nem sempre esse apoio é efetivo.
A maioria do atendimento é realizado na rua. Entretanto, em casos em que há a necessidade de realizar um exame em local privado, a equipe depende das unidades de saúde para concluir o tratamento. Contudo, a assistente social Franciely Pereira, que atua no CnaR, aponta que algumas unidades chegam a negar atendimento para essa população. Isso vai contra a lei do SUS (lei 8.080/90), que estabelece que o acesso à saúde é um direito de todos. Esse direito está sendo negado.
Essas negativas são ancoradas na discriminação em relação ao mau cheiro ou à falta de documentação. Justamente por lidarem com essa realidade diariamente, muitas pessoas em situação de rua se privam de acessar as unidades, porque sabem que serão julgadas ou que terão o tratamento recusado. “A população não vê as pessoas em situação de rua como seres humanos”, critica a assistente. A partir disso, essas pessoas dependem do Consultório na Rua como único meio de acesso à saúde, já que não têm acesso às UBSs.
O CnaR trabalha tanto os aspectos médicos e de acesso à saúde médica quanto o apoio social – encaminhamento a abrigos e contato com familiares, por exemplo –, realizando uma abordagem adaptada às necessidades do paciente. Como muitos não sabem ler, por exemplo, a equipe faz a receita médica desenhada, e explica as partes do tratamento de acordo com o nível de conhecimento dos pacientes. “A gente lida com eles como qualquer pessoa. Com eles eu falo de igual para igual”, cita a doutora Thielly Guerra.
A prescrição de medicamentos também é modificada, priorizando remédios que são tomados apenas uma vez, como o benzetacil. Thielly explica que a pessoa pode continuar consumindo álcool ou drogas, mas ainda é melhor tratar o paciente do que correr o risco de desenvolvimento de uma infecção ou sépsis. “Na condição deles, a gente pesa o que é melhor: tomar o antibiótico sabendo que vai beber, ou não tomar e ter uma infecção que pode se agravar”.
Franciely destaca que o projeto foca no acolhimento qualificado dessas pessoas. Além do acompanhamento médico, o CnaR realiza encaminhamentos para abrigos ou para o Centro POP e entra em contato com familiares da pessoa quando necessário. “A gente faz essa escuta ativa e esse acolhimento, não é apenas uma mera conversa que você teria com um amigo.” Assim, a equipe consegue algumas vezes convencer o paciente a deixar de consumir álcool, por exemplo, em casos de tratamento de gestantes. “É uma negociação diária”, adiciona Thielly.
Os profissionais contam também com a ajuda da comunidade, para que o tratamento da população em situação de rua seja bem-sucedido. Em alguns casos, a equipe do CnaR faz um combinado com donos de comércios locais: o paciente realiza algum serviço para o dono do estabelecimento – arrumar mesas, por exemplo –, em troca de dinheiro ou de um local para guardar os medicamentos. “Eles têm uma rede de apoio, que é um dono de uma loja que abre todo dia, e a gente deixa o remédio com eles”, explica a doutora. Redes de apoio como essas são construídas para garantir o tratamento eficaz do paciente.
As funcionárias trabalham diariamente contra o preconceito, mostrando que não há razão para um julgamento negativo sobre a população em situação de rua. Thielly conta que em seu primeiro dia de trabalho seus colegas acharam que ela foi corajosa ao não ter medo de entrar na cabana de um dos pacientes para examiná-lo. Entrar no local geralmente é necessário para o tratamento, e ela diz que não entende a barreira que as pessoas criam em relação a pessoas em situação de rua. “Medo de quê? Para mim foi algo natural, eu até sinto mau odor, mas não é algo que me impeça e não deveria me impedir de atuar”.
Atualmente, o Consultório na Rua é a única forma de acesso das pessoas em situação de rua à saúde, já que eles não são recebidos na maioria das unidades. Apesar dos vários benefícios do CnaR a essa população, Thielly e Franciely frisam que ele é uma solução temporária, e que o ideal seria que as unidades de saúde realmente acolhessem essa população. “Deveria existir um mundo em que qualquer pessoa poderia acessar uma unidade de saúde”, reforça Thielly.