Novos cursos de medicina expõem qualidade duvidosa da formação dos profissionais
Ao entrar em uma sala de aula e fazer a pergunta “quem quer fazer medicina?”, provavelmente grande parte das mãos serão levantadas. Em 2022, foram 41,7 candidatos por vaga no curso da Ufes. Mas essa relação pode chegar a números maiores, como aconteceu em 2018, na Universidade Estadual de São Paulo (Unesp), em que foram contabilizados 312,7 candidatos por vaga. A crescente procura pelo curso vem se tornando um campo de grandes investimentos por parte das faculdades particulares.
Em 2024, dois novos polos de ensino voltados para a formação médica foram inaugurados na Grande Vitória. Dados da pesquisa Demografia Médica da Faculdade de Medicina da USP e da Associação Médica Brasileira (AMB) mostram que uma vaga em um curso particular de medicina vale 2 milhões de reais para a instituição de ensino. O estudo expôs também que, em 2022, as escolas médicas privadas do país teriam capacidade de gerar uma receita total de 20,9 bilhões de reais.
Mas, para além dos grandes lucros, serão formados grandes médicos? A alta demanda pelo curso pode ser uma solução para a falta desses profissionais em diversas cidades do Espírito Santo?
Nas salas de aula e consultórios
Conforme o Censo da Educação Superior, realizado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), o percentual de ocupação das vagas em escolas médicas em 2023 foi o mais alto entre as graduações do país. Foram 96,6% de vagas preenchidas nas instituições públicas de ensino e 94,6% nas privadas. Isso significa que, em uma sala de aula do curso, quase todas as carteiras estão ocupadas.
Por outro lado, a Demografia Médica de 2024, realizada pelo Conselho Federal de Medicina (CFM), revela que Vitória é a capital com a maior densidade de médicos em todo o país. Nela, a cada mil habitantes, existem 18,68 médicos. Já no interior do Espírito Santo, a densidade é de 2,22 médicos por mil habitantes. É com base nesse cenário que duas faculdades particulares da Grande Vitória anunciaram seus novos cursos de medicina.
Grande demanda, mais vagas
Até abril de 2024, o Estado tinha oito polos acadêmicos que possuíam escolas de medicina, sendo um público e os outros sete privados. Mas, a partir da metade do ano, esse número aumentou: agora, são nove centros com o curso.
A graduação de medicina da Faesa, centro universitário particular, recebeu um investimento de aproximadamente 23 milhões de reais. Somente a inscrição para fazer o vestibular do curso chega a 550 reais. Uma breve busca no site da instituição aponta também que as mensalidades do curso de medicina custarão 9.985 mil reais. Cada turma contará com 60 vagas: 50 para candidatos concorrendo na ampla concorrência e 10 vagas destinadas a candidatos cotistas (não especificadas). Apesar dessas informações, o site da Faesa não deixa claro se o novo curso vai aderir ao Fundo de Financiamento Estudantil (Fies) ou às bolsas do Programa Universidade para Todos (Prouni).
O foco da escola de medicina dessa instituição é a educação em saúde digital, como revelam dados de seu site, desenvolvendo uma formação em “[…] serious game, gamificação, realidade virtual e aumentada, Homem Virtual”. Mas, não deixa claro do que se trata todos esses termos, nem como eles são aplicados na medicina moderna. A equipe do Primeira Mão entrou em contato com a Faesa, mas até o fechamento desta reportagem a instituição não se manifestou sobre as questões levantadas.
Já na Faculdade Multivix, a novidade é o polo acadêmico de medicina em Cariacica. Informações divulgadas no site da instituição de ensino mostram que foram destinadas 57 vagas para ampla concorrência e 3 para cotas (nesse caso, pessoas com deficiência, renda ou estudantes de escola pública). A mensalidade do curso custa 8.990 reais. Além disso, o site não deixa claro qual será o hospital-escola do campus de Cariacica.
A portaria 13/2013 do Ministério da Educação (MEC) associa a abertura de novos cursos médicos à existência de um hospital de ensino. Eles não são obrigatórios; mas, de acordo com o MEC, são essenciais para a vivência prática do estudante e para a sua formação completa.
Enquanto algumas instituições constroem novos polos, outras optam por superlotar as salas de aula. Em nota divulgada nas redes sociais, o Centro Acadêmico de Medicina da UVV denunciou a abertura de mais de 100 vagas em cada turma, em um espaço físico no qual somente dois auditórios comportam esse número de alunos.
O grande número de estudantes por turma desencadeia uma série de problemas, como tempo de aulas reduzido e falta de materiais básicos para todos, como luvas e linhas de suturas. Ademais, o curso de medicina na UVV não conta com hospital-escola. Enquanto isso, a instituição estima investir até R$ 100 milhões na construção do novo polo em Linhares, para a inauguração de uma nova escola médica.
Mercantilização do ensino
Para os alunos de diversos cursos de medicina do estado, tanto públicos quanto privados, a abertura de novas escolas médicas, da forma que vem ocorrendo, é motivo de repúdio. A diretora do CA de Medicina da Emescam, Carolynne Rigoni, ressalta o descaso das instituições de ensino com os cursos que já existem. “As diretorias negam os pedidos básicos dos alunos, enquanto abrem outras escolas. O que importa, no final, é ter 100 alunos entrando e reduzir os gastos”, critica.
Rigoni destaca que “ter mais médicos não significa melhorias no sistema de saúde, e a interiorização proposta pelo Programa Mais Médicos nos mostrou isso.” Para ela, uma das soluções possíveis seria o aumento das vagas dos cursos de medicina nas universidades federais.
A presidente do DA de Medicina da Ufes, Helena Napoli, afirma que o aumento das escolas médicas é um reflexo da comercialização da educação. “Esses cursos não têm a estrutura mínima necessária para uma formação completa. Isso tudo vai muito além do que um aumento de oferta, é resultado de um processo de mercantilização do ensino”, cita. Ela completa ressaltando a importância de uma reflexão sobre as reais dificuldades. “A questão não é a alta demanda nem o número de médicos formados, mas sim a falta de médicos no interior, de especialistas, no atendimento a atenção básica da saúde e outros.”
CRM é contra
O CFM criou o Sistema de Acreditação de Escolas Médicas (SAEME-CFM), que funciona como um selo de qualidade das formações médicas do Brasil. Atualmente, o Espírito Santo conta com nove escolas de medicina; dessas, apenas duas possuem o selo SAEME. Nenhum dos dois cursos que foram inaugurados neste ano possui essa qualificação. Eles também não possuem hospital-escola ativo, como é exigido pelo MEC.
O presidente do Conselho Regional de Medicina do ES (CRM-ES), Fernando Tonelli, destaca que o órgão, em momento algum, foi consultado pelas instituições particulares de ensino na montagem dos novos cursos. Tonelli afirma também que o CRM, assim como o CFM, é contrário à abertura de mais escolas médicas da maneira como vem ocorrendo. Para ele, a boa formação dos alunos e a adequação ao cenário da saúde de cada região são fatores que estão sendo constantemente ignorados.