A história da mulher que adorna os jardins do Palácio Anchieta imortalizada pelo artista plástico italiano Carlos Crepaz
Acordar cedo, levantar e sair pelas ruas em busca de papelão: essa era a rotina de Dona Domingas, embaixo de chuva ou de sol, de olhares enojados ou de pena. Será que essa senhora tímida, que mal levantava a cabeça e olhava apenas para o chão se imaginaria representada numa escultura em frente ao palácio Anchieta?
Tudo começou quando o artista italiano Carlos Crepaz veio para o Brasil, em 1951, e foi morar em Santo Antônio, bairro em que Dona Domingas residia. Com o tempo, começou a se aproximar da senhora cabisbaixa que passava por sua casa em busca de papelão. Alguns anos depois, o primeiro busto que representava essa figura criou forma e desde 1956 o escultor fez mais três obras com o mesmo título: “Dominga”.
Além da intrigante imagem que ocupa uma das laterais da escadaria Bárbara Lindemberg, no centro de Vitória, uma outra, em escala menor, preenche os salões do acervo do Museu Nacional no Rio de Janeiro. As outras duas esculturas estão no país natal do autor, para o qual voltou no final de sua vida.
Embora o artista tenha intitulado a obra como “Dominga”, a escultura localizada na subida do Palácio não possui identificação. Por isso, ficou conhecida como “A Pietà do Lixo”. A Pietà é a famosa obra de Michelangelo, em que Maria segura o corpo de Cristo. Dona Domingas também segura algo nas mãos: um saco cheio de papéis e papelão, que, dia após dia, se transforma no pão que ela coloca na mesa. Assim como a Pietà de Michelangelo, a Pietà do Lixo não só representa a dor, mas também a transcendência — a beleza na tragédia.
Essa história, que por muito tempo foi esquecida na memória capixaba, ressurgiu com a biografia escrita pelo advogado e autor Estêvão Zizzi. Há décadas, ele tem se dedicado a investigar vestígios da vida dessa “Dona” desconhecida. Ao chegar em Vitória, em 1980, o escritor começou a explorar diversos monumentos históricos, mas um, em particular, chamou sua atenção: “Uma estátua de uma senhora negra, corcunda, descalça, comum saco nas costas e um cajado na mão direita, vestida com uma roupa preta e pesada. Seu aspecto era o de uma pessoa marcada pelo sofrimento, visível nas rugas das mãos, nos olhos caídos e nas feições envelhecidas. Ela estava localizada numa das ruas laterais do Palácio Anchieta”, contou Estêvão.
Em sua ampla pesquisa por documentos, certidões e depoimentos da época, o escritor conseguiu chegar ao verdadeiro nome da senhora: Domingas Felipe. Vinda de uma família escravizada, Domingas carregava a mesma expressão registrada na escultura: olhos pesados que não viam mais que o chão à sua frente e mãos calejadas que trabalhavam dia a dia para continuar existindo.
Relembrando toda a trajetória do Brasil e de sua raiz escravocrata, vem a pergunta: como essa obra de uma mulher preta, catadora de papelão está em frente ao palácio mais importante do estado? Segundo informações da Prefeitura de Vitória o, então, prefeito da época de 1970, Chrisógono Teixeira da Cruz, tinha a intenção de homenagear os trabalhadores negros.
Após ter contato com a escultura de Dona Domingas, no próprio ateliê de Carlos Crepaz, o prefeito decidiu que esse seria o tributo. Já o lugar escolhido para ser ocupado se dá pelo fato de que Domingas passava por ali todos os dias na sua árdua função de subsistência.
De acordo com a mestre em artes, Fabíola Fraga: “Um monumento público, para além de sua concepção estética e imagética, precisa, de alguma forma, sinalizar a história de sua época, a realidade em que ocorreu, uma espécie de memória transportada para além do tempo”. Acima de uma homenagem prestada, a representação de uma catadora de papel, faz refletir sobre o tratamento dado à população pobre, negra e desamparada de um século atrás, que ainda se registra nos dias atuais. Seu sustento, muita das vezes romantizado, era, na realidade, a face mais brutal de um período ainda colonial, escravocrata e marcado pela desigualdade social. Viva Dona Domingas. Viva as Donas Domingas.